Coisas interessantes

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Anthony's Monologue

"There was a time, in a not very distant past, when people died like flies. The country was at war, a civil war. Servants and Lords, highborn and forgotten children, maids and ladies... People from every rank of our broken society just kept dying. Of course, most people survived. But there were many who did not see daylight again.

Still, about the survivors... A lot of them lost some limbs to the explosions. Nowadays, is not hard to find people with iron arms or legs, or devices to keep bomb fragments away from vital organs. Yet, that's never a pretty sight. We lost more people for infection than for bullets. In a world where medicinal herbs were rare and more expensive than jewlery, the life of almost every amputee had its days counted down.

Most women who suffered from this kind of injure commited suicide. The strong ones who decide to keep living were forced to hide their iron arms, dealing with them with a certain clumsiness and never being allowed to embrace the protesis thing properly, as the man were free do to as they pleased. The iron legs were easier to hide... But it was a tough life anyway.

And that was rather convenient to Erian.

She lost a hand, but it wasn't for an explosion. The girl was dueling with someone, in a pillage we did a long time ago, and one man cut off her hand. She payed him back cutting his throat open and ripping off his tongue with the hand she had left. It was quite an achievement, and only then our men truly started to respect her. When we finally got her an iron hand, she did the attachment herself. And the infection started to crawl her arm, until one day she came out of her chambers with a new iron hand; this time, it had part of a forearm as well. She asked my help to keep the blood from flowing out of her arm. At first, I did not knew what she meant.

But soon enough she made a tourniquet, and horror came to me when I realized that she was just about to cut the infection out, to keep her alive for as long as she could rip off pieces of her rotting arm. She did the cutting herself... She did EVERYTHING herself. Once again I saw horrifying attachment being done... And that was it.

I found out that she would have to do that every five years. We had enough resources to slow down the infection, at the very least. Not only she managed to stay alive, but she also used that iron arm as a second weapon. And that was how she became famous. 'The woman with the iron claws'. She even added some emerald fingernails to that thing later.

Now that became dangerous. But the convenient part of living in a society where a civil war happened, is that she is not alone on the iron arm thing. And a very good consequence of that is a very simple detail that will allow her to sucessfully play her new role as a modest and invisible housewife: all women these days wear gloves. All the time."

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DISCLAIMER: Não é bem um conto. É um monologo que faz parte da narração da história de Erian, minha protagonista, para um projeto futuro, que pode virar livro ou graphic novel (ainda não sei). Mas achei válido postar aqui anyway o/ como boas vindas às novas marés da vida.

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Vendetta em Dó Menor

Seus pais bem que lhe avisaram, há algumas décadas atrás, que o caminho que ele escolhera não seria fácil. Lembrar disso em momentos de dificuldade como os que passava era muito desolador. "Ao menos", pensava, "ao menos tenho com quem dividir o pouco pão que consigo." De qualquer forma, Greg só conseguia parar pra pensar nisso enquanto não estava trabalhando. Se tinha uma coisa que amava mais do que qualquer um, até mesmo mais do que amava Eric, era o transe no qual mergulhava quando começava a trabalhar. Já tentara diversos lugares, mas o sucesso não mudava muito: o metrô, as ruas, praças... Nada parecia funcionar numa cidade como New York, onde as pessoas não têm tempo sequer se apreciar o café que tomam, que dirá para esquecer de correr e assistir dois músicos tocarem ao vivo.

Mesmo assim eles não paravam. Greg às vezes se sentia culpado por não ter a oportunidade de oferecer algo melhor a seu filho, mas Eric nunca reclamou; tomou de bom grado um dos únicos bens que Greg possuía - um cello absurdamente belo, com uma afinação magnífica e qualidade sonora impecável - para aprender a tocar com o próprio pai. Greg, por sua vez, permaneceu com sua humilde flauta transversal - com a qual conseguia fazer verdadeiros milagres musicais. Os dois tocavam juntos pela cidade, conseguindo juntar  poucos trocados por dia, de gente que nem prestava atenção no trabalho fantástico que faziam. Ainda, pai e filho conseguiam sobreviver de forma humilde. Até os dois descobrirem que Eric, que completara 14 anos no mês anterior, sofria de uma condição cardíaca. Isso foi descoberto da pior maneira possível, é claro. E uma dívida com o hospital já pesava nas costas de Greg.

Não era uma sentença de morte imediata, mas Eric precisaria de um transplante mais cedo ou mais tarde. 

As condições financeiras do homem não chegavam nem perto de cobrir os gastos com a saúde do filho. Começou vendendo o cello, e mesmo conseguindo um bom dinheiro por ele, pagou apenas dois meses de hospital para Eric. Greg tentou vender sua flauta também, mas ninguém a quis. Mas ele estava disposto a tudo para salvar seu filho, nem que tivesse que doar seu próprio coração. Contudo, encontrou uma solução melhor para os seus problemas.

Com o tempo, Greg se envolveu com bandidagem. Começou com furtos e "entregas", partindo em seguida para o ramo das drogas. Rebaixou-se ao nível de ter de lidar com viciados e mandar ameaças às suas casas. Estava dando certo, pois o dinheiro apenas entrava. Entrava e abria o caminho para a salvação de Eric, que não tinha a menor ideia do que o pai fazia. O jovem, já com dezessete anos, não era mais nenhuma criança e percebia que o pai estava profundamente perturbado, emagrecido e cada vez mais lembrando um cadáver.

- Pai... - chamou o jovem em um dos dias de visita - ... Pode me trazer o nosso cello? O doutor falou que eu poderia começar a fazer alguns exercícios agora que já passei da fase da cirurgia.

"Sim...", pensou Greg, sentindo sua cabeça pesar, "... Eu te consegui um coração, meu filho. Antes tivesse sido o meu próprio."

- Acho que o doutor se referiu a algo relacionado a caminhadas lentas, Eric. - atalhou. Se apenas soubesse onde estava aquele cello agora... Faria qualquer coisa para recuperá-lo. Mas afastou esses pensamentos, sorrindo para o filho quase curado.

- Pai... O que andou fazendo pra pagar todas essas contas de hospital? - perguntou o filho, com um olhar sério e deveras afiado.

- Música, filho. Sempre música.

- Eu sei o que um músico ganha. Também sei que você não costumava ter manchas escuras em volta dos olhos, e também não pesava trinta quilos. O que tá havendo? Quando eu sair daqui quero te ajudar, pai. Sei que não está fácil.

"Filho, você não tem ideia.", Greg amargou.

- Poderá me ajudar sim, Eric. Mas agora preocupe-se com sua recuperação, okay? Agora preciso ir. Voltarei amanhã.

A cada vez que o deixava, o homem se sentia um pouquinho mais morto. Enquanto caminhava para fora do hospital, recebeu uma ligação que o preocupou. Minutos mais tarde estava sendo prensado contra a parede de um barracão da periferia.

- Você não tá fazendo isso direito, Greggory! - ameaçava um homem de porte assustadoramente grande, careca e com olhos faiscantes.

- Não... Eu j-juro... 

- AH, JURA? ENTÃO O QUE FEZ AQUELES VICIADOS FUGIREM DA CIDADE? Acho que alguém os andou aconselhando a fugir, Greggory. Viciados de cérebro frito como os "seus" não pensam sozinhos. Eles fazem qualquer coisa que nós mandemos que façam! - o brutamontes sufocava Greg, que ainda estava contra a parede e já não conseguia mais falar.

Enquanto isso, sirenes tocavam no centro da cidade. E após o que pareceu uma eternidade, Greg finalmente ouviu uma voz diferente dos berros guturais de seu chefe.

- Chegamos com a mercadoria, Sonny! - berrou um homem sem rosto, trazendo outro amarrado e com um capuz cobrindo a cabeça.

- AH, perfeito. Agora, Greggory, você vai confessar o que fez. Na frente do seu filhinho. - e tirou o capuz de um Eric apavorado e terrivelmente pálido. 

- PAI, O QUE TÁ ACONTECENDO?

- ... Sonny... Eu te imploro...

- CONFESSE, GREGGORY! - o homem berrou, pressionando violentamente uma pistola contra a cabeça de Eric.

- EU FIZ, EU MANDEI ELES FUGIREM! DEIXEM ELE--

A súplica de Greg nunca foi ouvida; foi cortada pelo barulho de um tiro, que foi seguido por incontáveis disparos vindos de cinco armas. Lançando um último olhar de agonia para o pai, Eric caiu de cara no chão. Greg ouviu o baque do corpo inerte de seu filho ao se chocar com o concreto e pode ver o sangue se espalhando ao redor do cadáver. A partir daí, tudo aconteceu muito rapidamente: Greg conseguiu fugir do barracão, houve uma perseguição muito longa e, quando percebeu, já estava escondido num esgoto.

Não soube quanto tempo se passou, ou como recuperou sua flauta. Mas os amaldiçoava. Repetia para si: "Malditos sejam. Eu vou te comer vivo, Sonny. Malditos sejam. Comerei pedaço por pedaço." Nos momentos em que não repetia essas palavras, fazia sua flauta ressoar. Com fúria. Os acordes de vingança ressoaram por todo o mundo subterrâneo daquela cidade. Aquela maldita cidade, que cairia em desgraça por suas mãos. Pelas mãos de Greg, e pela única coisa que lhe restara: sua flauta.

E assim, numa manhã, quando o gordos e satisfeitos habitantes da cidade saíram de suas casas, encontraram as ruas indavidas por milhares de ratos que iam devorando tudo o que viam pela frente. Eles eram... Insaciáveis.

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Amor de Irmão

- Isso é só uma rebelião. Chame os guardas e acabem com isso!

Rin, não é apenas uma rebelião...

A história que lhe contarei não tem um final feliz. De fato, vi poucas histórias com finais felizes do lugar de onde vim. Meu nome é Len, e sou de um reino há muito destruído. A última rainha que o governou era muito jovem quando assumiu o trono: tinha apenas quinze anos. Ela cresceu lidando com as pressões do reino e foi endurecendo com o passar dos anos. Rin tornou-se uma tirana. Era uma garota muito caprichosa, e seu encanto era tal que ninguém próximo poderia negar-lhe o que pedisse. O povo tinha fome, e Rin não ouvia seus gritos, enclausurada em seu palácio. O povo estava doente, e Rin não estendia sua mão. Ela era cruel.

Mas era minha irmã, e por ela eu também me tornaria cruel.

Pensa-se que laços entre irmãos são quase sempre nós cegos; incômodos, em uma luta constante e sem sucesso de se desfazer. O nosso caso estava mais para um laço fortemente atado. Enquanto éramos crianças eu não entendia muito bem o que isso significava... Mas quando a rebelião teve início percebi que meu destino estava atado ao dela. Nunca tive um grande problema com isso, e Rin parecia não se incomodar também. Nós éramos a mesma coisa. Uma coisa só, separada em dois corpos. Isso é, sinceramente, como eu encarei a situação até o fim.

E tudo começou com a inveja de Rin. Havia uma princesa no país vizinho, a criatura mais bela em que já tive o privilégio de pousar meus olhos. Seu nome era Miku, e ela era noiva do herdeiro do país do Norte. Apesar desse fato, me apaixonei por ela assim que a vi pela primeira vez. Encantadora, e é claro, inalcançável para um mero servo como eu. O meu título era de Duque, mas o papel que eu sempre desempenhei foi o de servo pessoal de Rin.

Certa noite, Rin veio a mim num estado de ira que eu nunca havia visto. Ela chorava de ódio em meus braços, deixando cair ao chão o convite do casamento entre Kaito e Miku. Eu mesmo me encontrei desolado com a notícia, mas não da mesma forma que Rin. E ela me pediu o impossível.

- MATE-A, LEN.

Não consegui acreditar na seriedade das palavras de minha irmã naquele momento. Foi preciso olhar em seus olhos para entender que aquilo era uma ordem, não um pedido. Devo dizer que, ao longo de minha breve existência, nunca pude dizer uma palavra de negação à ela; este caso não foi uma exceção. E Rin era a única pessoa no mundo pela qual eu assassinaria minha doce e proibida Miku.

Assim parti, enviando à minha amada uma mensagem falsa, para que ela fosse se encontrar com Kaito às escondidas nos jardins de seu palácio. Quando ela chegou, me passei por um servo do príncipe, e disse que a guiaria até ele. Miku era tão inocente que veio comigo sem questionar. Deixei que se sentisse segura e que se distraísse, acontecendo tudo muito rapidamente: puxei-a pelas mãos, e quando ela se lançou aos meus braços uma lâmina atravessou seu ventre. Ela me olhava com tristeza, mas não uma tristeza arrasada... Parecia que, de alguma forma, tinha pena de minha alma. Miku acariciou  meu rosto enquanto ainda estava consciente, e com um breve beijo, senti um sopro de vida deixar seu corpo; seu lábios gelando mais e mais ao toque dos meus.

Eu não consegui me perdoar. Mas Rin... Eu a perdoei antes mesmo de ela me pedir aquilo. Antes mesmo de nascermos... Ela já tinha meu eterno perdão.

Após esse evento a rebelião se transformou em revolução. Os países vizinhos descobriram que a sentença de morte da princesa Miku foi assinada por minha irmã, e logo vieram atrás dela. O castelo foi sitiado, e assim que tomei as medidas de segurança necessárias corri para os aposentos de minha irmã. A solidão penteava seus cabelos louros com atenção, enquanto ela ria para o espelho.

- Camponeses! Camponeses e guerreiros e usurpadores, todos contra o meu castelo! - ela dizia, rindo... Ou estaria chorando?

- Rin, você precisa fugir. Posso ganhar algum tempo para que consiga escapar.

- Fugir? - ela perguntou, enxergando a seriedade da situação. - Para onde?

- Para outro país. Algum bem longe daqui.

- Isso é só uma rebelião. Chame os guardas e acabem com isso!

Rin, não é apenas uma rebelião... Três países querem a sua cabeça.

- Len...

- Eu tomarei o seu lugar. - afirmei. - Essa já era minha intenção há algum tempo, Rin. Eu sabia que viriam atrás de você, então tomei todas as providências para que fuja com segurança. Eu vestirei as suas roupas e tomarei seu lugar na guilhotina. Ninguém poderá notar a diferença... Somos gêmeos, afinal.

Tive de observar calado as lágrimas e os protestos de Rin enquanto os meus guardas a carregavam para sua fuga. Fiz o que prometi, e me vi em frente ao povo faminto e doente que gritava pela cabeça da rainha tirana. Ao colocar meu pescoço naquela guilhotina, pude jurar que vi Rin em algum lugar... Vestindo uma capa e chorando antecipadamente minha morte. Respirei aliviado. Era o máximo que eu podia fazer por ela. A única pessoa pela qual eu dei, sem pestanejar, minha vida.

E assim, com um sorriso, disse adeus a essa vida.

***

DISCLAIMER: Esse texto foi baseado nas músicas da série Story of Evil, criada por Mothy. A premissa é a mesma de um outro texto meu, o Alfaiataria. Então o disclaimer é basicamente o mesmo e eu tô com preguicinha :33

terça-feira, 8 de outubro de 2013

Deadline.

Em algum canto deste planeta, às onze horas da noite, havia um escritor. Ele olhava para a neve que caía sem pressa através da janela. Pensou ouvir alguém bater à sua porta, mas era coisa da sua cabeça: "O prazo", pensou, melancólico. "Cinco textos em dois dias... Como fui deixar isso acontecer?", ele remoía.  Estava há cinco horas sentado em frente à sua máquina de escrever, e conseguiu parir apenas duas linhas.

Precisava sair dali.

Ele se levantou, puxando um cobertor de cima da cama - desarrumada há semanas - e aninhando-se nele. Vagarosamente foi até a cozinha e fez um café forte, rindo com a ironia em sua moleza. Terminou seu café com lentidão, e serviu-se de outra caneca antes de voltar à máquina. Há quanto tempo não dormia? Não se lembrava. Ao passar pelo corredor que o levaria novamente ao quarto, ele parou.

Olhou vagarosamente para a direita.
Havia uma moldura, e uma menina dentro dela.

Em outro canto do planeta, um canto muito distante do canto do qual eu falava, havia uma artista. Seu ateliê, outrora branco, estava coberto de tinta vermelha. Ela se encontrava deitada num chão coberto de jornais sujos, e não havia um pedaço de seu rosto que não estivesse sujo das mais variadas cores. Contudo suas mãos, apesar de também estarem sujas, apresentavam apenas o vermelho das paredes. O prazo a venceu, e o papel que a informava de sua demissão estava ao chão, respingado de... Sangue? Ela olhava para o teto, mas não enxergava mais nada. Junto com a tinta em suas mãos havia o sangue saindo de seus pulsos abertos, ensopando mais e mais o jornal estendido embaixo do corpo inerte da mulher.

Ela expirou junto com o prazo.
O escritor piscou e se viu dentro da moldura do espelho: seus olhos estavam arregalados. Não sabia o que tinha acontecido ali... Mas sem se importar se aquilo foi fruto de sua exaustão ou se foi uma visão legítima, ele correu para a máquina de escrever e arrancou a folha velha, substituindo-a por uma nova.

Começou então a escrever.

"(Texto 01)
Prazo Expirado

'Essa é a história de como eu morri [...]'"

terça-feira, 20 de agosto de 2013

Ana dos Jardins

Pedalava sua bicicleta ao som de um acordeon que podia ser notado apenas por seus ouvidos. Os curtos cabelos castanhos, escondidos dentro de uma boina esverdeada, permaneciam protegidos do vento. O olhar agitado registrava a cidade inteira com paixão ardente. Assim, quando o sentimento transbordava e não cabia mais em si ela parava; da cestinha de sua bicicleta, tirava um bloco de papel barato e uma caneta esferográfica preta. Começava, então, a registrar em traços belos e firmes aquele ponto da cidade pelo qual sentiu amor no momento.

Era uma mulher de paixões efêmeras. Seu mundo era um eterno outono e tinha cheiro de canela. Chamava-se Ana Rosa, mas gostava mais de violetas. Não que não gostasse de alguma flor, mas é que realmente tinha uma queda pelo azul-violetado. Ou seria violeta-azulado? A dúvida sempre a divertia.

Ana Rosa odiava certezas. Nunca gostou de escola, mas desde pequena juntava conhecimentos e experiências em caderninhos. Cada dia para ela era uma nova jornada. Cada passeio com sua bicicleta era uma nova descoberta, e cada ponto da cidade um novo jardim a ser desbravado, registrado e amado. E como amava aquela cidade. Mudara-se para lá por amor, um amor que nunca sentiu por pessoa alguma. A cidade era a única regra em sua vida, pelo simples motivo de que era a única constante variável que já vira.

O nome dessa cidade é Curitiba. Não tem, naturalmente, cheiro de canela... Mas Ana Rosa sabia onde procurá-lo.

A menina não sabia que, anos após a sua morte (que aconteceria - por completo - em mais ou menos dez anos a partir daqui), seria a musa de não apenas um, mas de diversos escritores e de suas epifanias. Ela se preocupava, no momento registrado neste texto, com os tijolos amarelos de uma casa de telhado verde. "É uma bela história", você deve estar pensando - e com razão! A história de vida de Ana Rosa é bela. Bela de uma forma que, se conseguires ler por inteiro, lhe fará sentir uma dor terrível no coração. A garota desenhava em seu caderninho com muita concentração, e só levantou a cabeça ao sentir falta de uma boa iluminação; escurecia. Ana Rosa resolveu pegar sua bicicleta e ir para casa... Continuaria o desenho de memória.

Mas ela não teve tempo sequer de subir na tal bicicleta. Antes que pudesse entender o que estava acontecendo, dois homens de três metros de altura a jogaram no chão. Eles não tinham rostos para mostrar. Ela foi arrastada pelas pernas para dentro da casa de tijolos amarelos e telhado verde, que estava abandonada, e lá dentro suas roupas foram rasgadas. Tudo era um borrão em vermelho mais um branco trêmulo de uma lâmpada em curto. Foi agredida, xingada, socada, humilhada. Sangrou por sua flor, por sua boca, por vários cortes, por baixo da própria pele e também pela alma. Após o que lhe pareceu uma eternidade... Acabou. A agressão, os agressores, a luz... Tudo se foi.

Inclusive parte de sua vida.

Encontraram-na ao entardecer do dia seguinte, em circunstâncias que nunca voltaram à sua memória até o dia de sua morte. Lembrava-se de pouquíssimas coisas, mas algumas imagens ficariam para sempre impressas em sua mente.

Os tijolos amarelos.

O telhado verde.

O belo jardim de violetas que crescia em uma parte do terreno.

Quando conseguiu recuperar seu eu, sua existência e sua consciência, tempos depois, Ana Rosa vendeu sua bicicleta. Fez um voto de despedaçar qualquer violeta que estivesse ao seu alcance; senta repulsa pelo azul-violetado que testemunhara o começo de seu fim... Ou violeta-azulado. Tanto faz. Também começou a omitir a Rosa de seu nome, por ter perdido seu gosto por flores. Deixou os cabelos crescerem, tingiu-os de vermelho e comprou uma moto. Trocou a boina pelo capacete, as blusas de lã por roupas normais de gente grande. Então viajou para a Rússia, e ficou lá por uns tempos.

Voltou Anoushka. Ou então, para o futuro escritor... Ruby.
Nunca mais sentiu cheiro de canela.

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Alfaiataria

Eu moro em Enbizaka, um pequeno vilarejo no Japão. É um lugar pacato, e por ser pequeno, todos aqui se conhecem. É um lugar deveras tradicional, e onde nada demais acontece. Nada mesmo. Ah, quase esqueci! Meu nome é Kayo, e sou dona de uma alfaiataria, embora não tenha empregados. Passo meus dias fazendo ou consertando vestes, e a vida é... Boa, eu diria. As pessoas, de forma geral, gostam muito de mim: por não cobrar um preço abusivo pelo meu trabalho, dizem que sou uma boa menina e sempre me presenteiam com alguma comida caseira além do meu pagamento usual. Eu tenho, também, um marido; mas não tenho perspectiva nenhuma de engravidar, pois ele não parece me querer.

Ele sequer volta para casa à noite.

Mas eu preciso continuar meu trabalho. As pessoas, de tão boas que são, sequer comentam a traição de meu marido. Seria por piedade? Sendo qual for o motivo, a eles sou muito agradecida. Não preciso dessa vergonha! Sou uma menina trabalhadora. Minhas tesouras nunca param! Pois lá eu estava, cortando a seda florida com minha tesoura, uma herança de minha mãe. Eram ferramentas muito boas, precisavam de pouco tempo na afiação para que o seu fio pudesse cortar ao mísero roçar da lâmina. Assim, ao invés de ir para a cama, eu preenchia minhas noites com trabalho e uma canção.

"Continue a cortar, tornando a costurar
O suave tecido que te enche o olhar
Desejando sempre o que não lhe cabe
Corte a seda! Mostre-lhe o que sabe!"

Amanheceu um belo dia no vilarejo, calmo como sempre. Resolvi sair um pouco de minha alfaiataria. Escolhi então um belo kimono azul, com flores prateadas, uma faixa púrpura e meus melhores sapatos para caminhar pela rua principal. Cumprimentei alguns clientes na rua, com um sorriso estampado no rosto, até ver o meu marido sair de uma casa. Quem diabos é aquela mulher ao lado dele? Aquele kimono vermelho... Apropriado para alguém daquele tipo. Bonita... Não aguentei vê-los juntos, não aguento aquela mulher recebendo um carinho dele. Eu, a esposa, não recebo nem uma palavra e ela recebe toques? Saí correndo daquele lugar, voltando imediatamente para minha alfaiataria.

Eu fiz algo para merecer isso?

Toda essa humilhação pública, eu mereço?

Retomei meu trabalho, pois tinha uma nova encomenda. Lutando contra a tristeza eu continuei a cortar, pois coincidentemente eu precisava costurar um kimono vermelho. É esse o tipo de mulher que lhe apraz, meu marido?

"Continue a cortar, tornando a costurar
O suave tecido que te enche o olhar
Desejando sempre o que não lhe cabe
Corte a seda! Mostre-lhe o que sabe!"

Não sei quanto tempo se passou desde o incidente da mulher em vermelho. Sei que algum tempo depois, quando o kimono novo já estava pronto, houve um burburinho na cidade sobre uma tragédia; mas eu estava decidida a não sair mais de casa. Porém, estava curiosa: nunca acontecia nada em Enbizaka! Fui, então, olhar o movimento pela janela. Todos estavam muito alvoroçados, e o medo se instaurou ali. Mas nem naquela situação o meu marido pareceu tomar vergonha: lá estava ele com outra mulher! E consolando-a, ainda! Abraçava a moça pela cintura, na qual ela usava uma bela faixa verde. Uma bela moça para cair em seus modos e gostos. Fechei a janela com um estrondo. Como ele podia fazer isso comigo? Na frente da vila inteira? Minhas pernas cederam e tornei a chorar, escondendo o rosto com as mãos. ELE É MEU MARIDO! Numa fúria desolada voltei ao trabalho, mexendo nervosamente com minhas tesouras e agulhas, pois precisava consertar uma faixa rasgada que acabara de secar da lavagem.

"Continue a cortar, tornando a costurar
O suave tecido que te enche o olhar
Desejando sempre o que não lhe cabe
Corte a seda! Mostre-lhe o que sabe!"

Dormi sobre o trabalho em progresso e acordei com um grito de fazer a alma pular do corpo: havia acontecido um assassinato! Sem sequer vestir outra roupa eu saí correndo, com medo de a vítima ter sido o meu marido; eu nunca poderia desejar a sua morte, não de verdade! Qualquer coisa dita através da raiva é sem fundamento! Enquanto corria na direção da comoção, vi de relance o meu querido marido sair de uma loja de adereços. Desviei de meu caminho e corri para abraçá-lo... Mas estaquei no meio do caminho quando o vi consolando uma terceira menina, muito jovem - UMA CRIANÇA! -, e colocando em seu cabelo um grampo dourado belíssimo. Aquilo foi demais para mim.

Eu não tenho nada. Nenhum contato. Nenhuma palavra, nenhum carinho. E essas outras, essas desonradas ganham carinhos, gestos, palavras e presentes! PRESENTES! O que ele pensa que está fazendo? ELE NÃO TEM LIMITES? VERGONHA? DECÊNCIA?

"Continue a cortar, tornando a costurar
O suave tecido que te enche o olhar
Desejando sempre o que não lhe cabe
Corte a seda! Mostre-lhe o que sabe!"

Quando me dei conta estava novamente em casa, terminando meu trabalho. Minhas tesouras sempre foram dessa cor? Eu costurei até meus dedos sangrarem, e o sangue pareceu preencher uma parte grande até demais do chão da loja... Mas finalmente terminei meu trabalho. E agora se ele não vem me ver, eu irei até ele. Já amanhecia quando eu terminava de me vestir como essas meninas que ele gosta. Então saí e o encontrei na rua, estranhamente abatido... Eu usava um kimono vermelho, uma bela faixa verde na cintura e um grampo de cabelo dourado. Sorria. Então, com uma mesura, eu o cumprimentei e perguntei se estava bela para ele.

Ele ruborizou, e sua resposta foi: "Como vai? Já nos conhecemos?"

Como se fôssemos estranhos.
Como se fôssemos estranhos.

O boato que corre no vilarejo é que uma família de quatro pessoas foi morta naquele verão. Eles estão errados, minha família era apenas o meu marido! Como nunca encontraram os corpos, o mistério dos assassinatos nunca foi desvendado. Naquele verão eu comi muitos pastéis de carne com inhames temperados. Aprendi a não sentir mais saudades dele e não chorar mais à noite enquanto lavava o sangue do chão de minha alfaiataria. Não sei como aquele sangue todo foi parar lá... Isso seria para sempre um mistério para mim.


***


DISCLAIMER: Esse conto na verdade é baseado inteiramente na música 円尾坂の仕立屋 (Enbizaka no Shitateya). Essa é a minha interpretação da música, como se eu estivesse no lugar da personagem, como se eu estivesse vendo, fazendo e sentindo tudo aquilo. Então os créditos da história são inteiramente do criador da música (que se identifica como Mothy), eu apenas a tirei da melodia uma personagem para trazê-la à vida em texto corrido. :3

quarta-feira, 10 de julho de 2013

Aportando pela primeira vez.

- Ainda acho que é uma ideia precipitada...

- Cale a boca, Barker. Sei o que estou fazendo.

Os dois viajantes usavam capas muito grossas, e se protegiam da chuva forte e persistente com seus capuzes. Tinham um encontro marcado com um informante em uma taverna na rua principal do vilarejo adjacente à cidade de Norwich. Seus passos abafados pelos trovões eram rápidos e discretos, e seus vultos se esgueiravam a cada lampejo no meio da tempestade. Se alguém os reconhecesse tudo estaria perdido; entretanto, a informação coletada seria a mais valiosa até então. Os dois prosseguiam apressados até finalmente chegarem ao local escolhido: O Beholder Caolho.

Era um lugar cheio de tipos estranhos, até mesmo para os padrões dos viajantes. Barker - um homem de porte grande e forte, porém com alguma graça em seus movimentos - puxou seu colega para o canto menos iluminado da taverna, no qual eles encontraram uma mesa entre as sombras. O tempo deles era limitado: tinham até a próxima briga de bar para conseguirem a informação e se esgueirarem de volta para o zeppelin que sobrevoava o vilarejo naquele instante. Não se deram ao trabalho de baixar os capuzes; ninguém naquele tipo de lugar o fazia. Os que não frequentavam O Beholder Caolho pela cerveja barata o faziam para tratar de negócios obscuros. O anormal seria um happy hour acontecer naquele lugar.

Os dois esperaram. Foi uma espera que pareceu eterna, mas finalmente o informante chegou; era um homem pequeno, atarracado, de aparência suja e mazelada. Instruído a procurar a mesa mais escondida do lugar ele foi, e logo fazia contato com aqueles dois vultos encapuzados. A transação iniciou-se quando Erian, uma pessoa muito menor e com uma aura muito mais ameaçadora do que a de Barker, estendeu um peso de ouro para o homem. Mas o que chamou a atenção dele, num primeiro momento, não foi o brilho da moeda estendida, mas a mão que a estendia. Era uma prótese feita do que aparentava ser uma liga metálica resistente e maleável. Parecia forte. Poderia em poucos segundos estraçalhar sua garganta. O informante se sentiu estranhamente atraído para uma ratoeira naquele momento; achou que as coisas não podiam piorar.

Foi aí que ele ouviu a voz que vinha daquela pessoa: era uma mulher.

- Apresentações são dispensadas. Pode começar a falar. - disse Erian, num tom claramente hostil. Barker observava o movimento da taverna, enquanto ouvia a conversa. Sua mão direita estava pronta para empunhar uma arma.

- Eu não quero problemas, por favor... - começou o homem, numa breve súplica. - Sei pouquíssimo sobre a situação, mas ouvi algumas coisas. A ordem de execução selada definitivamente saiu de Norwich, e chegou aos corsários através de falcões. Também ouvi, enquanto servia uma refeição para o Capitão Gilles, uma definição de estratégia para o ataque do Mother Mary...

- Nomes. - interrompeu Erian, impaciente. - Eu vim aqui para coletar nomes. Quais são os que você me dará, sr. Davos?

- Já estou chegando lá... - explicou-se, olhando para a mão metálica batendo seus dedos na mesa de madeira com irritação. - Eu desertei aquele zeppelin, estava com muito medo do conflito, e quando ouvi falar do massacre ocorrido depois agradeci aos Deuses por me iluminarem e me ajudarem a fugir... Mas antes de abandonar a tripulação eu ouvi um sobrenome: Dawies. - concluiu, enfim.

- Isso é quase alguma coisa, mas estou mais interessada na ordem selada. Chegou a ver o selo, sr. Davos? Como ele era? - perguntou a mulher, com genuíno interesse.

- Vi de relance. Parecia uma montanha, mas nela havia algo muito grande enrolado... Algo como uma serpente gigante, ou um...

- Dragão? - completou Erian, sabendo em que família aquilo resultaria.

- Sim, poderia ser um dragão sim. - confirmou o homem. - Permita-me--

O homem nunca pôde terminar sua frase, pois no centro da taverna uma mesa foi virada em cima de um homem, e uma briga se iniciou. Em poucos segundos todo o bar estava em polvorosa. Mas Davos não teve a chance de fugir, ou de entrar na briga, pois no meio daquela baderna ele teve a sua traquéia perfurada e arrancada pelas garras metálicas das quais ele teve tanto receio. Seu corpo caiu ao chão e foi arrastado para baixo da mesa, enquanto os dois viajantes saíam do estabelecimento da forma mais silenciosa possível.

***

- Aquilo foi realmente necessário, Erian? - perguntou Barker, enquanto procuravam o mesmo ponto em que aportaram naquela noite.

- É a segunda vez no dia de hoje em que dá a sua opinião sem ela ser pedida. - ela respondeu, subindo depressa uma encosta. - Informantes são armas perigosas, pois suas informações irremediavelmente passeiam de um lado da história para o outro. Isso foi apenas mais um nó na nossa rede cheia de pontas soltas.

- Descobrimos algo de valioso, pelo menos?

- Conseguimos a confirmação do que antes era uma teoria entre uma centena.

Ao atingirem o topo da encosta, Barker tateou o ar até encontrar uma escada de corda. Baixou-a, então, para que Erian começasse a subida. Esta, antes de prosseguir, fitou o homem.

- Temos de agilizar os papéis do casamento, Anthony. Em três meses nossa infiltração em Norwich se iniciará.

Barker sorriu pesarosamente e, subindo atrás dela, remoeu certos pensamentos.
"Em três meses vislumbraremos pela primeira vez o Inferno. Deus nos ajude."

sexta-feira, 31 de maio de 2013

Radioactive

"Há muitas e muitas luas atrás, tive um grande desapontamento com o mundo. Na situação atual eu vejo que aquilo não foi nada, na verdade. Mas há muitas luas atrás eu fui traída... Se pudesse escolher, na época, gostaria de ser literalmente apunhalada pelas costas. Mas agora... Não é nada. Deixando isso registrado, prossigamos para o meu relato...

Eu era uma moça jovem quando tive a ideia de abrir uma editora com meu também jovem namorado. O pensamento surgiu quando, em uma dessas viagens brutas pelo mundo, senti a vontade de ajudar jovens sonhadores como Dmitri e eu. Oportunidades estão em falta, sabe. Pois então, cinco anos depois, conseguimos concretizar esse sonho. Rápido, não? Também achei, e aí nos casamos. Tudo estava fácil e feliz demais. Agora, acredite se quiser: em apenas mais cinco anos, a Editora Brasileiríssima ganhou um "Global" no final.

Crazy, right?

Pois muito bem, nossa editora estava entre as mais importantes do mundo. Concursos e concursos eram abertos, jovens escritores do mundo inteiro eram publicados, obras de qualidade iam para as estantes; estantes que exalavam... Novidade. Isso gerou uma certa revolta daqueles escritores velhos que monopolizavam o mercado uma década antes do nosso surgimento. Nosso erro - meu erro - foi abrir as portas do quadro administrativo para esses experientes trabalhadores do ramo das estórias. Um grande golpe foi maquinado por aqueles sociopatas escondidos por seus personagens igualmente sociopatas, e Dmitri e eu perderíamos nossa Brasileiríssima em pouquíssimo tempo.

Assim, antes de perdê-la, a dissolvemos.

Após isso, com a renda de dez anos sendo guardada, talvez, para o sustento de filhos, construímos um abrigo. Nos instalamos em uma ilha no mar do Caribe, e construímos um forte debaixo da terra. A ilha, para quem a olhasse, estava desabitada. Que nada. Estávamos ali, enterrados na areia como uma concha muito chateada por ser usada o tempo todo por senhores molusquinhos. Não queríamos ver ninguém.

E as luas passaram...

Com o tempo, nossos sistemas de segurança acusavam que não era mais seguro sair. Aparentemente a Terceira Guerra Mundial tinha começado, e bombas resolveram explodir cidades por não terem mais nada com que brincar. Apenas estocamos uns alimentos e esperamos isso passar, sem vontade nenhuma de sair, mesmo.

Mais luas se passaram...

Já estávamos velhos. Dmitri e eu já tínhamos lido todos os livros do nosso acervo exaustivamente. Então, quando completei oitenta anos, senti a morte se aproximar do velho casal. Oras, não queria morrer sem dar uma última olhadinha na superfície... Vai que estava melhor?

Foi o que fiz. Após ter certeza de que os níveis de oxigênio estavam aceitáveis, o elevador me levou para a superfície da nossa ilhazinha esquecida. A luz do Sol me deixou atordoada por alguns momentos, e o calor foi sentido como nunca antes. Quando consegui olhar em volta, o choque: não havia mais nada. Nem mar, nem terra como eu a conhecia. Tudo era pedra. Não havia uma planta, um animal, um ser humano. Com um breve sorriso, me dei conta de que poderia ser uma das últimas humanas vivas. Então desci novamente para o meu refúgio e comecei a escrever essa carta, dizendo ao meu Dmitri que não havia nada para ser visto lá fora.

Então, sr. E.T. que possa vir a ler isso: não destrua seus inimigos que nem os vogons. O jeito humano é tão mais divertido que foi extinto.

Att,
A Última Humana Viv--

sexta-feira, 17 de maio de 2013

Um pulo de fé.

O jovem fechava seu notebook, acabara de postar uma fotografia com o namorado em uma rede social. Há cinco minutos tinha ido ao ar, e já registrava trinta e dois "likes". Pagava a conta de seu pedaço de torta e do café ruim e pequeno pensando nisso, e saía do lugar no qual dera check-in no Foursquare. Caminhava lentamente pela rua, mochila nas costas, pensando. Pensando em como queria ser especial.

Pois todos eram tão especiais...

E ele não sabia o que estava fazendo ali.

Gostaria de ter um maior controle sobre a sua vida, gostaria de ser perfeito como as pessoas que ele via  sorrindo na internet e na rua; embora na rua elas não parecessem tão... Especiais. O jovem sorria para as fotos, mas cada clique daquele parecia arrancar um pedaço de si. Cada flash parecia roubar um pedaço de sua alma, e ele sentia sua vida cada vez mais vazia. É claro que ninguém desconfiava disso; ele sempre sorria, como a maioria das pessoas à sua volta. Sempre ouvia comentários sobre pessoas invejando sua vida, querendo ser como ele; bonito, inteligente, com um namorado incrível, uma família legal e um futuro brilhante.

Ele, contudo, não se sentia bonito. Achava a escola fácil demais. Apanhava do namorado e sua família só mantinha uma aparência de aceitar sua sexualidade, agredindo-o dentro de casa. Não ousava, porém, quebrar essa impressão de levar uma vida feliz, não queria ninguém sentindo pena dele. Então, ao chegar em seu prédio, pensou que não olhava para o céu há algum tempo. Subiu direto para o terraço, deitando-se no mirante de barriga pra cima.

As estrelas eram poucas. Ele não pertencia àquele lugar, de poucas estrelas, muitos aviões e boas almas em falta. Não odiava o lugar, não. Apenas... Não pertencia àquilo. Não era sua casa, nunca fora. Assim,  começou a considerar uma viagem. Seria tão bom viajar! Ver outras coisas, ver gente nova, tentar encontrar um lugar em que fosse aceito. Seu coração se enchia de esperança à luz desses pensamentos.

Ele sorria enquanto planejava os detalhes da sua viagem. Nem arrumaria as malas, apenas viajaria de carona. Desceria onde fosse jogado, e de lá pegaria mais caronas para ver onde chegaria. Seguindo em frente, sempre seguindo em frente, sem olhar para trás. Queria que sua família o visse partir... Será que chorariam? Não sabia. Duvidava, na realidade.

Estava decidido: acertaria suas contas e viajaria para nunca mais voltar.

Assim o fez: cinco dias depois, com um bilhete para os pais e uma mensagem via inbox para o namorado, ele voou para sua nova vida, pousando rapidamente em seu destino incerto.

Mas estava errado em uma coisa.

Seus pais choraram com sinceridade em seu funeral.

quinta-feira, 25 de abril de 2013

Que horas são?


DISCLAIMER: Como dito no post anterior, cá está o outro quadrinho. Também em uma única página. Êeee lasqueira.

quarta-feira, 10 de abril de 2013

Harry Potter em uma página


DISCLAIMER: Postando agora e na sequência duas páginas de quadrinhos que fiz no decorrer de abril. Roteiro de HQ conta, né? HAHA. A proposta dessa aqui era rascunhar toda a história de Harry Potter em apenas uma página. Rendeu uns bons risos.

terça-feira, 2 de abril de 2013

Eu quero mais é cheirar uma rosa.

Levanta de manhã e "que sono". Que fome, que merda, odeio segunda-feira. Vai para o trabalho e "mas que chefe filho da puta". Que café ruim o que fizeram hoje, esse pão só pode ser de ontem, só tenho meia-hora de almoço? Vai para a faculdade e "que ódio desse professor". Que lugar insalubre, quanta gente idiota ao meu redor, como foi que conseguiram entrar aqui? Tinha que chover logo quando eu fui pegar o ônibus? Preciso de um carro, mas não tá fácil. Os impostos, o governo, a mídia, a internet, a falta de cultura e o preço da gasolina.

Tudo é sobre protesto.

Reclama dali, critica dali. Alfineta acolá.

Chega em casa e "que saco essa gentinha". O facebook tá uma bosta, o twitter tá em guerra, minha timeline tá poluída, o Chorão morreu, pare de bancar a viúva, deixa a viúva em paz, parem de comentar da morte dele! E só falam disso, e daquele deputado que ninguém fala? Mas todos falam dele! Ninguém protesta! Assine a petição.

O pôr-do-sol se torna cinza aos olhos das pessoas, e continua colorido na internet. Um arco-íris se desenhou pela primeira vez em cinco anos: cadê a câmera? Ah, a foto não ficou boa. Mais uma! Deixa eu colocar um filtro...

Alguém se lembra do perfume da rosa?

É mais fácil se lembrar da última rosa fotografada que se viu!

Reclamação. Scroll.
Reclamação. Scroll.
Reclamação. Scroll.

COMPAREÇA DE PRETO! Scroll.

Reclamação. Scroll.
Reclamação. Scroll.

LUTE! Scroll.

Reclamação. Scroll.
Reclamação. Scroll.

É DE SE SENTIR VERGONHA! Scroll.

Reclamação. Scroll.
E nessa de querer mais é cheirar uma rosa, fica aqui o meu protesto.

Scroll.

sexta-feira, 29 de março de 2013

Unintended, by (The) Muse

Ela se preparava para cantar no palco de um bar da zona universitária. Reconhecer Lucy era difícil. Há apenas seis meses a garota fugiu da clínica de reabilitação, sentindo-se traída por sua família e amigos. Planejou aquele momento por algum tempo, então; seria o seu show para os que a conheciam. Conheceram. Pois ela não era mais a mesma há um bom tempo.

A maquiagem escura ressaltava o verde de seus grandes olhos. As olheiras foram escondidas, mas ela não conseguiu disfarçar totalmente a magreza de seu rosto. Seus lábios estavam vermelhos, algo que ela sempre gostou de estampar. Vermelho, por todo seu corpo. Com branco e preto. Achava uma combinação estonteante. Claro que seus cabelos, outrora longos e ruivos, encontravam-se curtos como o de um garoto e muito desbotados. É isso o que acontece quando você é um viciado. Ao se olhar no espelho sequer conseguiu se lembrar de como era há cinco anos atrás. Precisou recorrer a uma foto em sua carteira, na qual duas jovens riam para a câmera. Elas eram idênticas na época. Lucy sabia, entretanto, que sua gêmea não era mais sua cópia. Penny permaneceu bela, jovial e saudável, com aquelas longas madeixas ruivas balançando e conquistando a todos.

No fundo Lucy sabia que a culpa era toda dela, mas também não era fácil se sentir abandonada naquela situação... Pois chegou um ponto em que ninguém mais a visitava. Obra de seu pai, supunha. Não importava, na verdade, pois a solidão estava lá. Sentada em cima de seu peito.

Colocaria aquilo para fora naquela noite.

Ela foi para o palco, fechando os olhos quando eles foram atingidos pela luz azul. Havia apenas um holofote apontado para aquele palco. Ela se sentou num banquinho, pegando uma guitarra e começando a tocar e cantar. Sua voz também estava diferente. Não em timbre, mas em entonação. Estava carregada de rancor. Tristeza. Renúncia.

"Esse não é um set sobre perdão.", ela disse, antes da primeira música.

Enquanto isso algumas pessoas chegavam ao bar. Dias antes, alguns bilhetes anônimos foram enviados para certas pessoas: a gêmea, o ex, a tia e o tio.

Penny foi a primeira a chegar, com uma foto das duas em mãos. "Hollis St., 345 8 p.m. Go alone." era o que estava escrito atrás da fotografia, com a letra da gêmea. Ela obedeceu e foi sozinha, determinada a trazer Lucy de volta para casa. Após uns minutos, encontrou-se com Leonnard, Jen e César, cada um trazendo consigo uma fotografia.

Juntaram as quatro fotos: em uma, Lucy beijava Leonnard apaixonadamente. Em outra, Lucy bagunçava a cabeleira ruiva de sua tia, Jen. Na terceira ela fazia o mesmo com os cabelos também ruivos de seu tio, Cé. E havia, é claro, a foto em que ela estava com a gêmea, na qual elas simulavam tocar um espelho.

Todas elas continham o mesmo recado escrito atrás.

Abalados, os quatro se encaminharam para perto do palco ao ouvirem a voz da garota sair das caixas de som. Tentaram correr, mas o lugar estava cheio demais. Tiveram de ir para o segundo andar do pub para conseguirem dar uma boa olhada em Lucy. A visão fez os quatro tremerem.

Foi no término da sétima música que ela finalmente avistou seus convocados. Não sorriu. Apenas lançou a eles um olhar tétrico e começou a cantar a sua última música.

You could be my unintended choice
To live my life extended
You could be the one I'll  always love.

Cantava com a maior tristeza que sentira na vida. As pessoas que estavam mais perto do palco, por conseguirem ver melhor o rosto da ruiva, começaram a chorar. Ela fitou seus familiares, cantando os próximos versos para eles.

You could be the one who listens to my deepest inquisitions 
You could be the one I'll always love.
I'll be there as soon as I can 
But I'm busy mending broken pieces of the life I had before.

Nunca os perdoaria por deixarem com que ela fosse trancada na reabilitação. Eles a esqueceram lá, e o tempo perdido não poderia ser recuperado. Voltou o seu olhar para Leonnard, cantando o trecho seguinte para ele.

First there was the one who challenged 
All my dreams and all my balance 
She could never be as good as you.

You could be my unintended choice
To live my life extended 
You should be the one I'll always love.

Em sua mente, ele foi  o primeiro que a abandonou. Sua mente estava anestesiada, pois sentia que já tinha chorado demais por tudo o que aconteceu. Lucy cantava com ódio, com rancor. Pela distância, a cantora não podia ver que todos os alvos dessa canção choravam. Penny já não podia mais olhar para a irmã. César abraçava a jovem, enquanto Jen apenas fitava o palco em choque.

Leonnard estava pregado no chão. Sabia que Lucy podia ser cruel, mas aquilo era demais até para ela. "Eu não conheço essa pessoa.", pensou. Queria ir embora... Mas não conseguia. Apenas ficou parado, sem conseguir se mexer, deixando as lágrimas rolarem em seu rosto.

You could be my unintended choice
To live my life extended 
You should be the one I'll always love.

I'll be there as soon as I can 
But I'm busy mending broken pieces of the life I had before.

Lágrimas negras escorriam pelas faces de Lucy enquanto ela cantava o trecho final dessa música. Leonnard deveria ser a pessoa com quem ela passaria o resto de sua vida. Sempre soube disso. Mas jamais teve a ilusão de que as coisas poderiam voltar a ser como foram no passado. Todos a desertaram. Ela apenas estava retribuindo na mesma moeda.

Tudo era justificado.

I'll be there as soon as I can 
But I'm busy mending broken pieces of the life I had before.

Com o acorde final, ela repetiu: "Como eu disse, esse não é um set sobre perdão." No meio do silêncio fúnebre que assolou o lugar ela deixou o palco.

Aquela foi a última vez em que Lucy foi vista.

quinta-feira, 21 de março de 2013

Um breve amor de ônibus.

A rotina matinal era a mesma há dois anos: acordar às seis. Tomar banho às seis e sete. Tomar café às seis e quinze. Ajeitar a mochila às seis e meia. Sair de casa às sete, pegar o ônibus às sete e quinze. Então, aulas até a pausa para o almoço, sem nada de muito especial acontecendo nesse período de tempo.

A última quinta-feira de fevereiro não foi diferente... Até o ônibus chegar.

O rapaz entrou com certa pressa e impaciência naquele ônibus, sentando-se na única cadeira vaga perto da porta 05. Como sempre fazia, colocou sua mochila no colo. Resolveu, então, fazer uma mudança drástica em seus procedimentos: ao invés de olhar através da janela, decidiu olhar para as pessoas dentro do ônibus. Lembrou-se, após algum tempo, o motivo de sempre se voltar para a janela.

Recebeu dois marca-páginas com mensagens religiosas e teve de comprar umas balas pra afastar a vendedora que falava cuspindo. Ele quase virou o rosto para apreciar a rua - como sempre fazia -, mas naquele momento ele a viu. A moça parecia ter uns dezenove, vinte anos. Vestia-se de forma calculadamente desleixada, e seus cabelos muito vermelhos desciam em cascata pelas suas costas. Ela ria com os lábios e os olhos, enquanto falava ao celular com alguma amiga.

Ruby, Ruby Ruby Ruby.

Ele parou por um momento para apreciar o que via. Sentia que, a qualquer momento, um par de asas platinadas poderia crescer nas costas da garota - que ele mentalmente chamou de Ruby - e, sem mais nem menos, resolver todos os problemas do mundo com o simples gesto de levantar voo. Estava apenas maravilhado. Ruby percebeu o olhar em sua direção, e imediatamente o retribuiu com um ar risonho. "Ela não deve ser daqui", pensou o jovem, diante do comportamento alegre e sociável da ruiva.

Os dois trocaram olhares por um tempo que não souberam medir, e as pessoas ao redor podiam sentir a energia que os dois geravam naqueles breves contatos visuais. O rapaz se sentia envergonhado... Melhor, encabulado. Olhar para Ruby era apenas desconcertante. Aquela magia foi quebrada de forma tão repentina quanto o seu início.

"Próxima parada: Estação Eufrásio Correia. Desembarque por todas as portas. Você poderá fazer as seguintes conexões..."

Ele se levantou, cedendo o lugar a uma mulher que usava uma saia jeans assustadoramente longa para uma saia jeans, e esperou a porta abrir. Olhou uma última vez para Ruby, que deu uma torcidinha na boca; aquele não era o ponto dela. Desapontado, desceu do ônibus e o assistiu seguir seu caminho, levando um anjo ruivo com ele. Um fato curioso: Ruby desceria na próxima parada.

Do ya, do ya, do ya, do ya
Know what you doing, doing to me?

Mais tarde, já em casa, ele foi assistir ao noticiário local. Entre uma notícia sobre queimas de estoque com a iminente mudança da estação e uma reportagem sobre a elevação do preço da gasolina, o âncora relatou brevemente um acidente em que uma moça, ao correr na chuva para tentar pegar um ônibus, foi atropelada e faleceu. Seu nome era Ana Rosa da Cunha. Uma foto três-por-quatro foi mostrada; até naquela foto ela estava linda, embora o tamanho de seus cabelos absurdamente vermelhos estivesse escondido. Os olhos e a boca, contudo, não sorriam juntos. O corpo seria mandado para Juiz de Fora, e o velório aconteceria posteriormente.

"Ela realmente não era daqui", pensou, tomado por uma incomum e profunda tristeza.

Could it be, could it be that you're joking with me?
And you don't really see you and me?

No dia seguinte ele acordou às seis. Tomou banho às seis e sete. Tomou café às seis e quinze. Ajeitou a mochila às seis e meia. Saiu de casa às sete, pegou o ônibus às sete e quinze. Seu olhar se voltou ao tempo todo para a rua, através da janela. Então, aulas até a pausa para o almoço, sem nada de muito especial acontecendo durante a manhã.

"Nada de muito especial" foi também exatamente o que aconteceu pelo resto dos dias daquele rapaz.

quinta-feira, 7 de março de 2013

Oblivione

Era um café como qualquer outro... Bem,  talvez não tão frequentado quanto um Starbucks, apenas por ser pequeno e muito escondido, localizado em uma rua estreita e frequentada por gente estranha. Certo, não era um café como qualquer outro. Caminhando vagarosamente, Victor pensava que não podia estar vestido de forma mais casual - era importante se misturar ao local para poder passar despercebido com sucesso. Ao virar uma esquina para entrar naquela rua sentiu-se nervoso: seria a primeira vez em três anos que faria algum contato com ela novamente. Apesar de estar ansioso, não respirou fundo; sabia que aquilo não adiantaria.

Ao abrir a porta do café um sininho tocou. O primeiro fragmento de ideia que se passou pela cabeça do rapaz foi... "Marrom." Pigarreou e foi procurar um assento no balcão, lendo o cardápio sem prestar atenção alguma. "Que lugar marrom. Sério mesmo que ela veio parar aqui?", pensou novamente. Ao percorrer o olhar pelo estabelecimento, com certo receio, ficou espantado por um momento.

Victor a identificou imediatamente, mas ela parecia outra pessoa. "Correção: ela é outra pessoa." A garota sorria como ele nunca a tinha visto sorrir, enquanto conversava com um cliente regular do café. Seus cabelos - agora louros - estavam muito mais longos do que antes, e presos numa trança desleixada. Seus olhos... Um céu azul contido em dois orbes. Antes que Anabelle o pegasse no flagra, voltou-se para o cardápio. Uma parte dele se arrependia de tê-la transformado em Ann. Outra parte jamais voltaria atrás. Outra ainda queria apenas sair dali.

"O que o senhor quer?", perguntou o homem atrás do balcão. "Marrom..."

- Um café, por favor. - pediu, sem nem perceber.

***

- VICTOR, NÃO! Eu não quero isso! Podemos ir juntos se...

- NÃO! Belle, é mais seguro se você for sozinha, já está tudo arranjado.

- EU NÃO ME IMPORTO! Você não pode me despachar sozinha para sabe-se lá onde e achar que eu vo--

A mão de Victor em sua testa a calou, e seus olhos castanhos pareceram invadir seu campo de visão, sua mente...

Seu corpo.

Sua alma.

***

"Curasque et corpora somnus. Sit praeteritis esse praeteritis, contemplans novum futurum."*

As palavras ditas naquela noite ecoavam na mente do moreno, atormentando seus pensamentos. Ele tirou um caderninho do bolso interno da jaqueta e começou a procurar um contrafeitiço... Até se lembrar dos últimos atentados às testemunhas de um crime deveras violento há três anos e meio. Uma das vítimas foi mergulhada num tanque de água que se enchia de cal aos poucos. Outra teve os membros torcidos até formarem quatro fraturas expostas, e foi abandonada no meio de um bosque. Os flashes dessas cenas fizeram com que fechasse o caderninho.

Tomou então um gole daquele café intragável e desagradavelmente marrom. Ele começou a entender o que realmente tinha feito, o que já era o primeiro passo para aceitação: Anabelle não existia mais. O ritual invalidou a existência da menina, seus registros foram apagados como se ela nunca tivesse nascido. Tudo foi substituído por uma nova garota... Que sorria para os clientes do café marrom em Liverpool.

Ao colocar a mão na testa de Anabelle e recitar aquelas palavras, ele jogou a garota no esquecimento. Mais tarde - na mesma noite em que insistiu para que Belle fugisse e ela tentou ir contra sua vontade - Victor a deitou carinhosamente num chão de madeira, cobrindo seu corpo com uma fina seda branca e cercando-a de velas acesas. O incenso queimava enquanto o rapaz recitava um dos feitiços em seu caderno, e ditava para a moça os detalhes da nova vida que estava prestes a assumir. Quando Belle acordou, seu nome era Ann, e tinha nascido e crescido em Liverpool. Apenas ouviu falar, bem por cima, daquele assassinato terrível que foi manchete por uma semana em todos os jornais do mundo.

Ela veio tirar a xícara vazia da frente de Victor, e quando seus olhos se encontraram ela sorriu para ele. Vê-la sorrir daquela forma o amoleceu, e antes que fosse enfeitiçado pelo desejo de estar com Belle - com Ann, com ela - novamente, jogou duas notas no balcão e se levantou para sair dali.

O sininho tocou novamente quando ele saiu do café, e o choque da diversidade de cores o abalou por alguns instantes. Reparou então que suava frio. "Boa. Lida com criminosos todo dia num puta centro urbano, mas não consegue sobreviver a um café marrom no meio do nada.", pensou com amargura. Ao fazer a caminhada de volta, o encanto do esquecimento fazia sua cabeça doer. "Curasque et corpora somnus. Sit praeteritis esse praeteritis, contemplans novum futurum. Curasque et corpora somnus. Sit praeteritis esse praeteritis, contemplans novum futurum."*

Só conseguiu tirar essas palavras da cabeça um pouco antes de dormir, duas noites após esse café marrom. Era melhor assim. Se ele a amava? É claro que sim. Apenas era melhor desse jeito. Anabelle estava segura, seu feitiço funcionou. Ela estava, para seu alívio, trancada em um mundo marrom.

Muito longe de todo aquele vermelho que estaria em seu destino, caso ainda respondesse por Belle.


NdT:
* Sono tranquilo. Deixe o passado no passado, contemplando um novo futuro.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Sad Christmas




Aquele seria o terceiro Natal sem ela.

Dezembro acabava de chegar, trazendo uma fina neve consigo. Da cozinha vinha um cheiro leve de biscoitos assados e canela, um aroma típico daquela casa quando a época das festas de fim de ano chegava. A dor de não ter Emily por perto ainda era grande, e as investigações permaneciam fortes em cima do caso de sequestro que chocou Whereverville. Ao tirar os biscoitos do forno, Alice separou alguns em um saquinho - como fizera desde o primeiro Natal sem sua afilhada - e o amarrou com uma fita verde. Criando sua própria tradição o deixou sob o pinheirinho, juntinho dos presentes debaixo da árvore. Sempre fazia saquinhos de biscoitos de Natal para as crianças, e a ausência de Emily não a impediria de manter as esperanças acesas e a massa assando até sua menininha voltar.

Para aquele Natal, Alice pediu a James para que escrevesse ao Papai Noel uma cartinha, pedindo o que ele gostaria de ganhar daquela vez. O garoto, já com dez anos, olhou de uma forma desconfiada para a mãe, que teve de recorrer ao bom humor inabalável de Christopher para convencer o filho. Ele estava crescendo rápido... Mais rápido do que Alice gostaria. O pior é que ela tinha a certeza de que o motivo principal desse amadurecimento precoce de James era falta de sua melhor amiga. Terminou de limpar a cozinha pensando nisso, e então saiu para dar uma espiada nos quartos. 

Giovanna tirava um cochilo, com Lois dormindo por cima dela e papéis com desenhos em giz e se esparramavam pelo chão, por cima de vestidos de festa roubados do closet de Alice. Com um sorrisinho, ela partiu para espiar o quarto de James. Normalmente ele estaria ali com Ryan, ou não estaria dentro de casa; dessa vez, porém, ele estava sentado à escrivaninha, concentrado em alguma coisa que Alice imaginava ser a tal cartinha. James era uma mistura tão interessante de seus pais que às vezes era difícil saber com quem se parecia mais: era difícil que ele parasse para fazer uma coisa só, como Chris. Ainda, quando conseguia, seu semblante compenetrado era quase uma cópia da expressão estudiosa de sua mãe. De fininho, Alice foi para a sala com alegria e tristeza dançando em seu coração, e ligou a televisão em um canal qualquer.

***

James não queria que ninguém lesse o que escreveu. Assim, ao terminar, colocou a carta em um envelope - feito por ele mesmo com sulfite e grampeadores - e "lacrou" a correspondência com cola branca. Evitando fazer barulho, passou pela sala com cuidado para não acordar sua mãe - que dormia profundamente no sofá, ao som de um programa desses de mulherzinha - e surrupiou um selo do escritório de seus pais. No envelope, as palavras "Ao Papai Noel, em mãos; de James L. W. - Whereverville" especificavam que apenas o destinatário teria a permissão de ler a carta. Então, antes de dormir, colocou o envelope debaixo de seu travesseiro; acordaria cedinho para colocar a carta no correio sem que ninguém percebesse.

***

Alice estava inquieta naquela madrugada. Tomada pela insônia, ela foi para a cozinha. Após beber um copo de leite e comer um biscoito frio, foi novamente olhar suas crianças. Giovanna e James dormiam despreocupadamente, arrancando sorrisos amorosos da mulher. Ela ficou mais tempo no quarto de seu menino, acariciando seus cabelos até notar a ponta de um papel saindo debaixo do travesseiro dele. Ela encontrou a carta, e em silêncio a levou para a sala. Observou o envelope por um tempo, para depois abrí-lo com cuidado e ler seu conteúdo.

"Querido Papai Noel,
Acho que eu não deveria acreditar no senhor ainda... Já tenho dez anos, né? Sou quase um homem feito, e todos os meus amigos já não acreditam mais. Mas o senhor sempre me trouxe tudo o que eu pedia, então não tenho por que não acreditar no senhor.

Noel, eu acho que me comportei nesse ano. Sempre ajudava a mãe quando ela me pedia, obecedi o paisempre que achei que ele estava certo (mas tenho que me defender quando acho que tô certo, né não?), e protegi a Gigi na escola quando ela precisou. Acho que fui um menino bonzinho, né? Porque foi difícil, Noel. E eu vou te contar por que agora.
Já tem três anos que a minha melhor amiga sumiu. Ela era minha vizinha, e afilhada  da minha mãe... E eu sou afilhado da mãe dela. Até fazemos aniversário no mesmo dia! O senhor lê jornal, Sr. Noel? Se sim, pode ter visto a notícia. O nome dela é Emily Owen Williams, e esse é o terceiro Natal em que os biscoitinhos que a minha mãe faz pra ela não são comidos. Eles só ficam ali.
Tá todo mundo muito triste, Sr. Noel. Minha dinda, meu dindo e mais todo mundo que conhece a gente... Porque não a encontramos ainda. Então eu queria pedir, do fundo do coração, pra não me dar brinquedos nesse ano. Não precisa mesmo, Noel. Só traz a Emily de volta, por favorzinho? Não vai ser um presente só pra mim, Noel! Pensa nisso!
Um grande abraço,
James."

Ao terminar de ler a carta, Alice soluçava. A dor de perder sua afilhada a atingira com toda a força novamente, como um tiro, juntamente com a súplica de seu filho naquela carta. Sentia culpa, tristeza, preocupação e arrependimento ao segurar o pedaço de papel com a letrinha caprichada de seu filho. "Por favorzinho?", ele pediu; e Alice, por um momento, pediu também um "por favorzinho" sussurrado para o nada. Então lacrou novamente a carta, recolocando-a no mesmo lugar em que a encontrara, e passou a noite em claro; e várias outras noites depois daquela, também.

***
O Natal chegou, passou, e o pedido de James não foi atendido.
No quarto Natal sem sua melhor amiga, o menino já não acreditava mais em Papai Noel.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Blood Issues.




Trata-se afinal do sangue. Esqueça a época, a evolução mundial e os avanços em magia; o sangue sempre terá o seu valor. O que sempre moveu o mundo foi o elitismo, o berço. Aqueles que têm por nascimento o direito de gorvernar são os que devem fazê-lo. A grande massa nasceu para ser comandada por alguém melhor instruído, criado e ensinado desde a mais tenra idade para assumir um dia o que lhe foi predestinado: o poder. E quem melhor para ter o poder em mãos do que um membro de uma raça superior? Trouxas devem se submeter aos bruxos. Opositores devem queimar em fogo selvagem, e seus gritos devem servir de exemplo para o povo dominado. O líder, é claro, deve ter não apenas magia correndo em suas veias: mas sim uma magia limpa, pura. A linhagem deve ser preservada. Deve ser filho de um casamento sacramentado, arranjado entre famílias poderosas que, naturalmente, devem se unir.

Ou não. Mas foi isso o que me ensinaram.

Descobri, muito recentemente, que ter sangue puro e ser o fruto de uma união poderosa é uma maldição. O sangue me traiu. O mesmo sangue que me dá poder... Me roubou a inocência. Eu senti, pela primeira vez em minha vida, o que é o calor do ódio dentro do peito; dissolvendo lentamente tudo de bom que um dia houve no coração - e por que não na mente? - de alguém. Senti minha sanidade se esvaíndo quando ouvi, da boca de um Hedberg, que... Surpresa! Eu não sou uma Crawford. Ouvi - e fui a única a ouvir - minha existência ser invalidada. O Hedberg, que ironicamente era meu mentor de Oclumência e um traidor imundo, me contou que Chloe Crawford não existia.

Eu nunca fui uma Crawford. Meu sobrenome de direito era... Hedberg.

O que significa que Chloe Hedberg anula a pobre e inocente Chloe Crawford. E ela não é nada além de uma mera bastarda.

Não que eu já não nutrisse um desafeto por Aldrick Hedberg. Há três anos, quando o flagrei com minha amada progenitora - não que eles saibam disso - em condições nada respeitáveis, eu o odiei. Ou pelo menos pensei que odiei a ambos. Eu não sabia realmente o que era odiar alguém; hoje digo que apenas senti raiva. Afinal eu era a menininha do papai. Ver minha mãe deitada com outra pessoa era... Inaceitável. Imperdoável. O ódio, o verdadeiro sentimento de ódio, eu apenas senti quando descobri que eu era nada menos do que o fruto daquela sujeira, daquela comunhão maldita. Essa granada sem um pino foi colocada em minhas mãos, e fui despachada para Hogwarts pela primeira vez segurando-a.

Alguém um dia me disse que guardar rancor apenas faz mal ao baú em que ele é colocado. Uma metáfora boba para eu entender que rancor apenas apodreceria o coração de quem o guardasse. Os anos se passaram e a cada dia, a cada hora passada, eu discordava mais dessa afirmação. A cada lição na Escola de Magia eu sentia uma arma a mais sendo colocada em minha mão. A cada treino de Legilimência ou Oclumência eu assistia ao crescimento de minhas habilidades. O destino que aguardava Iana Crawford e Aldrick Hedberg seria amargo; e estava, para o meu contentamento, em minhas mãos.

O rancor me fez renascer. O sangue me deu uma razão nova para tocar minha vida. Fui presenteada - e, novamente, amaldiçoada - com duas faces. Crawford? Hedberg? Sou ambos, e sou nenhum. Desde aquele primeiro de setembro, no qual fui enviada para longe de minha família com uma bomba em mãos, fui movida pelo rancor. Um motivo para que eu continuasse viva foi estabelecido: a vingança. A vida de um bastardo é cercada pelo desejo de autodestruição. E a culpa dessa terrível vontade de não existir... É dividida entre aqueles que me trouxeram a este mundo.

Minha mãe costuma me dizer que eu sou perfeita.

Eu concordo. Sou perfeita. Exatamente como ela e meu pai serão, quando eu os destruir com minhas próprias mãos.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

A descoberta de Giovanna



Um trovão a acordou com um susto naquela madrugada. Ela respirou fundo quando percebeu que era apenas aquilo. Um trovão. Giovanna se levantou de sua cama, indo até a janela. Abriu um pouco uma das cortinas, para observar a tempestade daquela pequenina fresta. Gostava de chuva, mas a violência que assolava a cidade naquela noite a deixava com medo.

Um relâmpago... E outro trovão. Ela se assustou novamente, mas dessa vez, o motivo não foi o que estava lá fora. A garota jogou os cabelos castanhos para trás, tentando disfarçar o nervosismo; sentia que havia mais alguém no quarto com ela. Não se atreveria a virar-se. Ao invés disso, abriu totalmente a cortina, e quase que imediatamente soltou um grito terrível, um berro de horror - pois na sua janela, além do reflexo fraco de sua cama, havia também o reflexo de uma silhueta que a fitava de forma ávida, ansiosa. Ela finalmente se virou, pegando o primeiro objeto que alcançou - um porta-retrato - e atirando-o na direção da silhueta.

O porta-retratos se espatifou na parede. 

Giovanna segurou a respiração até perceber que realmente estava sozinha. Ela pegou o porta-retrato quebrado e cuidadosamente juntou os cacos  de vidro. Parou então por um momento para admirar a fotografia que o objeto costumava abrigar: uma bela imagem de sua mãe, mais ou menos com sua idade, e seu avô ao lado dela. Reparava que, em seu próprio rosto, herdara alguns traços de seu avô; talvez mais nitidamente do que sua mãe. Tinham, Giovanna e seu avô, o mesmo semblante gentil; também o mesmo olhar sereno. Colocou a fotografia em cima de sua escrivaninha, parando para observar os outros três porta-retratos: um com a imagem dela, juntamente com seus pais e seu irmão, tirada há poucos meses. Os quatro sorrisos cintilavam ao sol. O segundo era uma foto de seu irmão com seus padrinhos - Jared Pollcheck e Iris Owen -, com dois sorrisos sinceros e um semblante malicioso, travesso. A terceira fotografia foi colocada recentemente em cima dessa escrivaninha: uma imagem da irmã de sua mãe, uma bela mulher chamada Beatrice. Ela se parecia muito com Alice. Tinha cabelos escuros, um tanto avermelhados, olhos cor de jade e uma aveludada palidez na pele. Alice, contudo, tinha um rosto gentil e delicado. Já Beatrice se parecia mais com a própria, também chamada Beatrice. A tia de Giovanna não era filha de seu avô. Aliás, a jovem - que agora fitava as quatro fotografias com certo incômodo -, há poucos meses atrás, sequer sabia que sua mãe tinha uma irmã. Ninguém sabia.

A mulher, de qualquer forma, faleceu ao dar a luz. O primo da morena, um rapaz chamado Erick Frostheart, herdara poucos traços da mãe. Giovanna se sentia mal por não ser tão envolvida com esse lado da família... Como se estivesse perdendo algo. Como se houvesse uma falha ainda não muito clara na estruturação da sua família.

Algo ali estava errado.

Ela se sobressaltou novamente ao ver outro lampejo, seguido de um trovão ensurdecedor. Para sua maior surpresa - e também para o seu terror -, o relâmpago iluminou dois vultos em seu quarto. Algo, porém, acalmou minimamente seu coração: seu avô e sua tia sorriam em sua direção.

Com a escuridão eles desapareceram. Boquiaberta, a garota caiu sentada em sua cama, com os olhos arregalados. Ofegava. 

"Such a beauty--", uma grave voz sussurrou. Ela estava, obviamente, assustada. Contudo, sua curiosidade superava seu medo.

- Quem...?

"Você sabe."

Giovanna não dormiu naquela noite. Poderia, sim, estar enlouquecendo. Aquilo poderia ser fruto de seus medos, suas esperanças, ou mesmo do sono; mas ela não acreditava nisso.

Em seu esperançoso coração, tinha muita fé na maravilhosa e assustadora possibilidade de ter realmente trocado palavras com seu avô.