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quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Vendetta em Dó Menor

Seus pais bem que lhe avisaram, há algumas décadas atrás, que o caminho que ele escolhera não seria fácil. Lembrar disso em momentos de dificuldade como os que passava era muito desolador. "Ao menos", pensava, "ao menos tenho com quem dividir o pouco pão que consigo." De qualquer forma, Greg só conseguia parar pra pensar nisso enquanto não estava trabalhando. Se tinha uma coisa que amava mais do que qualquer um, até mesmo mais do que amava Eric, era o transe no qual mergulhava quando começava a trabalhar. Já tentara diversos lugares, mas o sucesso não mudava muito: o metrô, as ruas, praças... Nada parecia funcionar numa cidade como New York, onde as pessoas não têm tempo sequer se apreciar o café que tomam, que dirá para esquecer de correr e assistir dois músicos tocarem ao vivo.

Mesmo assim eles não paravam. Greg às vezes se sentia culpado por não ter a oportunidade de oferecer algo melhor a seu filho, mas Eric nunca reclamou; tomou de bom grado um dos únicos bens que Greg possuía - um cello absurdamente belo, com uma afinação magnífica e qualidade sonora impecável - para aprender a tocar com o próprio pai. Greg, por sua vez, permaneceu com sua humilde flauta transversal - com a qual conseguia fazer verdadeiros milagres musicais. Os dois tocavam juntos pela cidade, conseguindo juntar  poucos trocados por dia, de gente que nem prestava atenção no trabalho fantástico que faziam. Ainda, pai e filho conseguiam sobreviver de forma humilde. Até os dois descobrirem que Eric, que completara 14 anos no mês anterior, sofria de uma condição cardíaca. Isso foi descoberto da pior maneira possível, é claro. E uma dívida com o hospital já pesava nas costas de Greg.

Não era uma sentença de morte imediata, mas Eric precisaria de um transplante mais cedo ou mais tarde. 

As condições financeiras do homem não chegavam nem perto de cobrir os gastos com a saúde do filho. Começou vendendo o cello, e mesmo conseguindo um bom dinheiro por ele, pagou apenas dois meses de hospital para Eric. Greg tentou vender sua flauta também, mas ninguém a quis. Mas ele estava disposto a tudo para salvar seu filho, nem que tivesse que doar seu próprio coração. Contudo, encontrou uma solução melhor para os seus problemas.

Com o tempo, Greg se envolveu com bandidagem. Começou com furtos e "entregas", partindo em seguida para o ramo das drogas. Rebaixou-se ao nível de ter de lidar com viciados e mandar ameaças às suas casas. Estava dando certo, pois o dinheiro apenas entrava. Entrava e abria o caminho para a salvação de Eric, que não tinha a menor ideia do que o pai fazia. O jovem, já com dezessete anos, não era mais nenhuma criança e percebia que o pai estava profundamente perturbado, emagrecido e cada vez mais lembrando um cadáver.

- Pai... - chamou o jovem em um dos dias de visita - ... Pode me trazer o nosso cello? O doutor falou que eu poderia começar a fazer alguns exercícios agora que já passei da fase da cirurgia.

"Sim...", pensou Greg, sentindo sua cabeça pesar, "... Eu te consegui um coração, meu filho. Antes tivesse sido o meu próprio."

- Acho que o doutor se referiu a algo relacionado a caminhadas lentas, Eric. - atalhou. Se apenas soubesse onde estava aquele cello agora... Faria qualquer coisa para recuperá-lo. Mas afastou esses pensamentos, sorrindo para o filho quase curado.

- Pai... O que andou fazendo pra pagar todas essas contas de hospital? - perguntou o filho, com um olhar sério e deveras afiado.

- Música, filho. Sempre música.

- Eu sei o que um músico ganha. Também sei que você não costumava ter manchas escuras em volta dos olhos, e também não pesava trinta quilos. O que tá havendo? Quando eu sair daqui quero te ajudar, pai. Sei que não está fácil.

"Filho, você não tem ideia.", Greg amargou.

- Poderá me ajudar sim, Eric. Mas agora preocupe-se com sua recuperação, okay? Agora preciso ir. Voltarei amanhã.

A cada vez que o deixava, o homem se sentia um pouquinho mais morto. Enquanto caminhava para fora do hospital, recebeu uma ligação que o preocupou. Minutos mais tarde estava sendo prensado contra a parede de um barracão da periferia.

- Você não tá fazendo isso direito, Greggory! - ameaçava um homem de porte assustadoramente grande, careca e com olhos faiscantes.

- Não... Eu j-juro... 

- AH, JURA? ENTÃO O QUE FEZ AQUELES VICIADOS FUGIREM DA CIDADE? Acho que alguém os andou aconselhando a fugir, Greggory. Viciados de cérebro frito como os "seus" não pensam sozinhos. Eles fazem qualquer coisa que nós mandemos que façam! - o brutamontes sufocava Greg, que ainda estava contra a parede e já não conseguia mais falar.

Enquanto isso, sirenes tocavam no centro da cidade. E após o que pareceu uma eternidade, Greg finalmente ouviu uma voz diferente dos berros guturais de seu chefe.

- Chegamos com a mercadoria, Sonny! - berrou um homem sem rosto, trazendo outro amarrado e com um capuz cobrindo a cabeça.

- AH, perfeito. Agora, Greggory, você vai confessar o que fez. Na frente do seu filhinho. - e tirou o capuz de um Eric apavorado e terrivelmente pálido. 

- PAI, O QUE TÁ ACONTECENDO?

- ... Sonny... Eu te imploro...

- CONFESSE, GREGGORY! - o homem berrou, pressionando violentamente uma pistola contra a cabeça de Eric.

- EU FIZ, EU MANDEI ELES FUGIREM! DEIXEM ELE--

A súplica de Greg nunca foi ouvida; foi cortada pelo barulho de um tiro, que foi seguido por incontáveis disparos vindos de cinco armas. Lançando um último olhar de agonia para o pai, Eric caiu de cara no chão. Greg ouviu o baque do corpo inerte de seu filho ao se chocar com o concreto e pode ver o sangue se espalhando ao redor do cadáver. A partir daí, tudo aconteceu muito rapidamente: Greg conseguiu fugir do barracão, houve uma perseguição muito longa e, quando percebeu, já estava escondido num esgoto.

Não soube quanto tempo se passou, ou como recuperou sua flauta. Mas os amaldiçoava. Repetia para si: "Malditos sejam. Eu vou te comer vivo, Sonny. Malditos sejam. Comerei pedaço por pedaço." Nos momentos em que não repetia essas palavras, fazia sua flauta ressoar. Com fúria. Os acordes de vingança ressoaram por todo o mundo subterrâneo daquela cidade. Aquela maldita cidade, que cairia em desgraça por suas mãos. Pelas mãos de Greg, e pela única coisa que lhe restara: sua flauta.

E assim, numa manhã, quando o gordos e satisfeitos habitantes da cidade saíram de suas casas, encontraram as ruas indavidas por milhares de ratos que iam devorando tudo o que viam pela frente. Eles eram... Insaciáveis.

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