Coisas interessantes

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Terceira Carta para Julieta

"Querida Julieta,

O ciclo está quase completo.

Finalmente juntei a última parte do quebra-cabeça para conseguir encarar o que o tempo todo estava me olhando direto nos olhos. Estava certa o tempo todo, e isso foi uma lição para nunca deixar de confiar nos meus próprios instintos. Consegui finalmente conversar com P., e ela se revelou até muito parecida comigo; em gostos e, especialmente, desgostos. Confesso que saí dessa conversa mais leve, porém não menos perturbada. A confirmação da farsa vivida finalmente chegou oficializada e autenticada em cartório. Contudo, é assim - acredito eu - que podemos finalmente virar a página de forma definitiva.

Gostaria de conseguir me desfazer dos poucos mementos que restam. Eventualmente, eles não terão mais nenhum significado para mim, a não ser o de um passado há muito esquecido. Um passado sem verdade, sem honestidade nos olhos e nas palavras, sem gozo e com falta de disposição para gozar. Olhando para trás, as coisas chegam a perder sua densidade... Parecia ser um sonho, que gradativamente se tornou o mais traumático dos pesadelos. Ainda tenho cicatrizes, minha amiga. Algumas ainda estão frescas, e são abertas de vez em quando; mas de forma geral... All is well.

Melhor do que bom, na realidade. Sobre as novidades felizes, fará um ano desde que Charming me encontrou, no final novembro. Estranho, não? Tanto tempo, e passou tão depressa... É como dizem, querida ouvinte: difícil ver o tempo passar, anestesiados pela inebriante felicidade de amar. E eu soube, Julieta. No momento em que ouvi sua risada pela primeira vez, após o primeiro toque, eu soube que seria ele quem me curaria de toda aquela dor. Não imaginava, entretanto, que ele faria muito mais do que isso por mim. Charming me trouxe harmonia, riso fácil, intimidade, amizade incondicional e, por fim, a coisa que eu mais prezo neste mundo: liberdade.

As cicatrizes podem estar no peito, nos olhos e no sexo, minha amiga, mas elas definitivamente não se encontram mais nas minhas asas. O sonho que tive há anos agora se realiza dia-a-dia, e não posso evitar que uma lágrima seja derramada neste papel (perdoe-me se a tinta se borrar no meio de meu relato). Minhas asas se abrem sem doer, minha querida, e me fazem levantar voo sem causar nenhum dano pelo caminho. Charming também possui asas, e elas são tão grandes quanto as minhas, talvez até maiores, e são de uma plumagem perolada cintilante. Voamos lado a lado, nos trançando entre as nuvens e ainda procurando um limite ao nosso céu azul, que se põe vermelho e coral e dourado de amor.

Acho que a conclusão que tirei, em resumo, é a de que não devemos esperar tanto do destino, pois ele é feito pelos nossos passos, lentos e indecisos. Um diamante em seu dedo pode, da noite para o dia, se tornar cinzas em sua boca - e, no dia seguinte, ser substituído por uma esmeralda (sua jóia preferida, feita para você). Sinto por ti, Julieta, que apenas pode me ouvir e lamentar o próprio silêncio. Espero que meus relatos tenham aquecido seu coração até agora, pois escrevê-los certamente tem sido um bálsamo para minhas feridas. Obrigada por tão pacientemente me ouvir, querida amiga. Acredito que logo minhas cartas chegarão a um fim, e você poderá finalmente descansar em paz; seja em seu túmulo, em sua casa em Verona ou no fundo de uma gaveta; pois acredito que você, Julieta, pode tomar mil formas diferentes para consolar os corações das mulheres.

Sinceramente,

Snow White."

quarta-feira, 7 de maio de 2014

Segunda Carta para Julieta

Cara Julieta,

Hoje recebi um bilhete de um fantasma.

Não está sendo fácil, minha amiga. Conversei com Romeu e, apesar de no atual momento dividirmos apenas um coração, nossos fantasmas e karmas ainda nos assombram - e nos aterrorizam. O meu fantasma ainda está muito presente na minha vida em vários sentidos, detesto admitir. Sabe quando, apesar de estarmos felizes, procuramos aquilo que todos chamam de "closer"? Isso é algo que ainda procuro, minha cara. Tenho conversado com queridos amigos e amigas, tentando juntar os pedaços perdidos do quebra-cabeça, e a figura final está quase completa. Também, e infelizmente, revela algo muito mais complicado e apodrecido do que eu poderia imaginar.

Falta apenas um pequeno conjunto de peças para que eu finalmente consiga chegar à raiz da situação, ao cerne desse fantasma e de todos os seus malfeitos. Mas falta-me a coragem, Julieta. Será que eu quero chegar ao final? Não me sinto preparada para me desligar, apesar de saber que é exatamente o que preciso. O curioso, minha amiga, é que o pior já passou - estou livre da ameaça física! Ele é apenas um fantasma. Apesar de todas as evidências recolhidas, me encontro em negação sobre o resultado final da minha jornada. Como poder aceitar as trapaças, as falsas lamúrias (quando elas pareciam tão reais que me levavam às lágrimas!), as mentiras deslavadas? O vitimismo? Como posso aceitar que convivi com uma ilusão por tanto tempo, cega às intempéries e enganada pela fé em um final feliz com um vilão? Não, Julieta. É difícil, e confesso que me encontro em uma encruzilhada.

Preciso conversar com uma última pessoa - ainda no mundo dos vivos - para conseguir essa última parte do enigma. Acenda uma vela para mim, Julieta. Não conseguirei enfrentar isso sozinha. Apesar de a verdade me olhar nos olhos, uma parte de mim ainda se recusa a aceitar. Romeu é de grande ajuda, revelando-se incrivelmente compreensivo com os meus fantasmas; de fato, ele também conserva os próprios. Espero que, na união de nossos corações, possamos quebrar essa maldição. Sinto que o momento se aproxima, minha querida. Está cada vez mais próximo, pois a cada dia tomo um pouquinho mais de fôlego e resisto fortemente ao pânico da manipulação. Isso acontecerá nos meus próprios termos, doce amiga. E eu gostaria de gritar aos sete ventos que "quem dita as regras sou eu".

Torça por mim, minha amiga, e obrigada por me ouvir tão pacientemente - embora acredite que não tenha muitos conselhos para dar-me, tendo uma natureza tão calada.

PS: Encontrei um nome melhor para o meu Romeu, e acho que vai achá-lo interessante. "Charming", pois ele me encantou desde o primeiro momento.

Com muito carinho,
Snow White.

domingo, 2 de fevereiro de 2014

Passarinho

Era uma vez uma gaiola

Com um pássaro dentro.

Quanto mais belas suas canções

Mais sua gaiola

O apertava.

Um dia

ficou

tão
ap
er
ta
di
n
h
a

Que o pássaro gritou

E enfim

S  a   i   u     v   o   a   n   d   o.

Rehab

Acho que a gente aprende depois de algum tempo.

Observo um copo pela metade logo em frente a ela, um cinzeiro com umas poucas bitucas. Eles não entendem quando ela diz que está se desintoxicando. Às vezes a gente precisa abater o corpo para desanuviar a mente. Eles não entendem. Falam de câncer, de doença, de vício. De que isso me importa, se finalmente ela se livra do pior de todos os vícios? O que são uns drinks e uns cigarros quando existe algo muito mais negro devorando sua alma, pedaço por pedaço? O que é uma briga de bar, o que são alguns hematomas na cara comparados a um coração devorado por vermes (lentamente, com mordidas tão pequenas que nem se percebe a morte chegando)?

A jovem discorda de seu amigo London: "Ela - não - fica a cada drink mais bonita."

O triste
é:

Ela concorda com seu amigo London: "Quero que a estrada venha sempre até você, e que o vento esteja sempre a seu favor. Quero que haja sempre uma cerveja em sua mão, e que esteja ao seu lado seu grande amor."

Mas que amor era aquele?

O amor a quebrou.

A Rehab é um lugar igualmente quebrado.

E se tudo estiver acontecendo em seu Palácio Mental?

Ele já salvou Sherlock da morte.

Poderia salvá-la também.

Explicaria as paredes acinzentadas, a falta de um garçom. Explicaria sua solidão naquela espelunca. Explicaria o fato de ser uma espelunca. É um vestígio, um pedaço do apodrecido. É o bar que o veneno criou. O veneno está aos poucos saindo do organismo (snap it, work it, quick - erase it), mas ainda deixou esse buraco no Palácio.

Ela foi longe demais pra desistir de quem é.


Apenas observo enquanto ela vira a cabeça para o cinzeiro. Lentamente, a jovem o recolhe do balcão e olha para o espelho à sua frente. O que ela vê é algo que parecia ter saído de um clipe do Radiohead. Olheiras, amargura. "Quando o Sol nascer a oeste e se puser no leste. Quando os mares secarem e as montanhas forem sopradas pelo vento como folhas. Quando meu ventre voltar a ganhar vida e der à luz um filho vivo. Então regressará, meu sol-e-estrelas, e não antes." Conhecendo a impossibilidade das palavras que continuavam a ressoar no Palácio, ela atirou o cinzeiro em seu reflexo, soltando o grito mais tenebroso e mais cheio de pesar ouvido nessa Terra. O grito veio diretamente de sua alma. O espelho se estilhaçou em incontáveis pedaços, e ela finalmente encontrou a saída secreta da Rehab. Ali havia uma tesoura, com a qual ela prontamente cortou as longas madeixas e também as deixou para trás. Entrou então pelo túnel atrás do espelho, e começou a trilhar pela saída. Deixava para trás mapas, cartas, flores, votos. Deixava todas as suas lembranças.

Por fim, ela chegou a um detonador que ficava na metade do caminho. Ela o acionou sem olhar para trás.

No fim do túnel, olhos castanhos e um abraço exatamente do seu tamanho a esperavam emanando um calor que há anos ela não sentia.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Carta para Julieta

Cara Julieta,

Hoje eu pedi o amor da minha vida em casamento.

Não diria que foi estranho, sabe? Era uma pergunta que pairava sobre nossas cabeças há algum tempo. Gostei de ter sido a primeira a perguntar. Quem disse que é obrigação do homem fazer essas coisas? Temos que correr atrás do que queremos. Ele correu atrás de mim quando eu ainda estava presa em minha torre (quase como você e sua sacada, Julieta!), nas garras da opressão flamejante de um terrível dragão. Palavras têm um poder inimaginável e incandescente; podem abrir um ferimento letal em nossa carne, podem fazer todo o sangue do corpo se esvair pelos olhos. Contudo, também podem salvar sua alma da morte. Podem curar, podem te tornar alguém mais forte. E se meras palavras podem fazer tudo isso, Julieta, imagine o que ações podem alcançar.

Foi assim que eu soube, minha amiga. Foi assim que soube que ele é aquela outra parte de mim, aquela parte que estava perdida no mundo. Em um dia completamente sem esperança, Julieta, encontrei o meu Romeu. 

Bastou um olhar para atrair a atenção. Bastou um toque para aguçar os sentidos.
Hoje, basta um abraço dos mais apertados para lavar todas as angústias do dia.

Basta um beijo para viajarmos a outro Universo.

Romeu me curou, Julieta. Sinto pela forma com que a sua estória terminou com o seu escolhido, mas tenho certeza de que, até o fim, você sentiu que ele era a sua salvação. No fim, todos nos libertamos (de uma forma ou de outra). É isso o que senti - e ainda sinto -, minha cara. Senti que estou caminhando diretamente para o que está escrito nas estrelas quando sussurrei - roçando meu corpo nu no dele em uma manhã de verão - para que se casasse comigo. Olhando fundo em seus olhos, aquela certeza emanando do meu ser; a certeza de uma segurança que nunca experienciei antes. A segurança da luz acesa, do olho no olho, dos lábios murmurando palavras ousadas no ouvido de quem tanto se ama.

O amor correspondido.

E o melhor de tudo, minha amiga,

Foi que ele disse, e aqui eu o cito: "Sim."