Coisas interessantes

sexta-feira, 29 de março de 2013

Unintended, by (The) Muse

Ela se preparava para cantar no palco de um bar da zona universitária. Reconhecer Lucy era difícil. Há apenas seis meses a garota fugiu da clínica de reabilitação, sentindo-se traída por sua família e amigos. Planejou aquele momento por algum tempo, então; seria o seu show para os que a conheciam. Conheceram. Pois ela não era mais a mesma há um bom tempo.

A maquiagem escura ressaltava o verde de seus grandes olhos. As olheiras foram escondidas, mas ela não conseguiu disfarçar totalmente a magreza de seu rosto. Seus lábios estavam vermelhos, algo que ela sempre gostou de estampar. Vermelho, por todo seu corpo. Com branco e preto. Achava uma combinação estonteante. Claro que seus cabelos, outrora longos e ruivos, encontravam-se curtos como o de um garoto e muito desbotados. É isso o que acontece quando você é um viciado. Ao se olhar no espelho sequer conseguiu se lembrar de como era há cinco anos atrás. Precisou recorrer a uma foto em sua carteira, na qual duas jovens riam para a câmera. Elas eram idênticas na época. Lucy sabia, entretanto, que sua gêmea não era mais sua cópia. Penny permaneceu bela, jovial e saudável, com aquelas longas madeixas ruivas balançando e conquistando a todos.

No fundo Lucy sabia que a culpa era toda dela, mas também não era fácil se sentir abandonada naquela situação... Pois chegou um ponto em que ninguém mais a visitava. Obra de seu pai, supunha. Não importava, na verdade, pois a solidão estava lá. Sentada em cima de seu peito.

Colocaria aquilo para fora naquela noite.

Ela foi para o palco, fechando os olhos quando eles foram atingidos pela luz azul. Havia apenas um holofote apontado para aquele palco. Ela se sentou num banquinho, pegando uma guitarra e começando a tocar e cantar. Sua voz também estava diferente. Não em timbre, mas em entonação. Estava carregada de rancor. Tristeza. Renúncia.

"Esse não é um set sobre perdão.", ela disse, antes da primeira música.

Enquanto isso algumas pessoas chegavam ao bar. Dias antes, alguns bilhetes anônimos foram enviados para certas pessoas: a gêmea, o ex, a tia e o tio.

Penny foi a primeira a chegar, com uma foto das duas em mãos. "Hollis St., 345 8 p.m. Go alone." era o que estava escrito atrás da fotografia, com a letra da gêmea. Ela obedeceu e foi sozinha, determinada a trazer Lucy de volta para casa. Após uns minutos, encontrou-se com Leonnard, Jen e César, cada um trazendo consigo uma fotografia.

Juntaram as quatro fotos: em uma, Lucy beijava Leonnard apaixonadamente. Em outra, Lucy bagunçava a cabeleira ruiva de sua tia, Jen. Na terceira ela fazia o mesmo com os cabelos também ruivos de seu tio, Cé. E havia, é claro, a foto em que ela estava com a gêmea, na qual elas simulavam tocar um espelho.

Todas elas continham o mesmo recado escrito atrás.

Abalados, os quatro se encaminharam para perto do palco ao ouvirem a voz da garota sair das caixas de som. Tentaram correr, mas o lugar estava cheio demais. Tiveram de ir para o segundo andar do pub para conseguirem dar uma boa olhada em Lucy. A visão fez os quatro tremerem.

Foi no término da sétima música que ela finalmente avistou seus convocados. Não sorriu. Apenas lançou a eles um olhar tétrico e começou a cantar a sua última música.

You could be my unintended choice
To live my life extended
You could be the one I'll  always love.

Cantava com a maior tristeza que sentira na vida. As pessoas que estavam mais perto do palco, por conseguirem ver melhor o rosto da ruiva, começaram a chorar. Ela fitou seus familiares, cantando os próximos versos para eles.

You could be the one who listens to my deepest inquisitions 
You could be the one I'll always love.
I'll be there as soon as I can 
But I'm busy mending broken pieces of the life I had before.

Nunca os perdoaria por deixarem com que ela fosse trancada na reabilitação. Eles a esqueceram lá, e o tempo perdido não poderia ser recuperado. Voltou o seu olhar para Leonnard, cantando o trecho seguinte para ele.

First there was the one who challenged 
All my dreams and all my balance 
She could never be as good as you.

You could be my unintended choice
To live my life extended 
You should be the one I'll always love.

Em sua mente, ele foi  o primeiro que a abandonou. Sua mente estava anestesiada, pois sentia que já tinha chorado demais por tudo o que aconteceu. Lucy cantava com ódio, com rancor. Pela distância, a cantora não podia ver que todos os alvos dessa canção choravam. Penny já não podia mais olhar para a irmã. César abraçava a jovem, enquanto Jen apenas fitava o palco em choque.

Leonnard estava pregado no chão. Sabia que Lucy podia ser cruel, mas aquilo era demais até para ela. "Eu não conheço essa pessoa.", pensou. Queria ir embora... Mas não conseguia. Apenas ficou parado, sem conseguir se mexer, deixando as lágrimas rolarem em seu rosto.

You could be my unintended choice
To live my life extended 
You should be the one I'll always love.

I'll be there as soon as I can 
But I'm busy mending broken pieces of the life I had before.

Lágrimas negras escorriam pelas faces de Lucy enquanto ela cantava o trecho final dessa música. Leonnard deveria ser a pessoa com quem ela passaria o resto de sua vida. Sempre soube disso. Mas jamais teve a ilusão de que as coisas poderiam voltar a ser como foram no passado. Todos a desertaram. Ela apenas estava retribuindo na mesma moeda.

Tudo era justificado.

I'll be there as soon as I can 
But I'm busy mending broken pieces of the life I had before.

Com o acorde final, ela repetiu: "Como eu disse, esse não é um set sobre perdão." No meio do silêncio fúnebre que assolou o lugar ela deixou o palco.

Aquela foi a última vez em que Lucy foi vista.

quinta-feira, 21 de março de 2013

Um breve amor de ônibus.

A rotina matinal era a mesma há dois anos: acordar às seis. Tomar banho às seis e sete. Tomar café às seis e quinze. Ajeitar a mochila às seis e meia. Sair de casa às sete, pegar o ônibus às sete e quinze. Então, aulas até a pausa para o almoço, sem nada de muito especial acontecendo nesse período de tempo.

A última quinta-feira de fevereiro não foi diferente... Até o ônibus chegar.

O rapaz entrou com certa pressa e impaciência naquele ônibus, sentando-se na única cadeira vaga perto da porta 05. Como sempre fazia, colocou sua mochila no colo. Resolveu, então, fazer uma mudança drástica em seus procedimentos: ao invés de olhar através da janela, decidiu olhar para as pessoas dentro do ônibus. Lembrou-se, após algum tempo, o motivo de sempre se voltar para a janela.

Recebeu dois marca-páginas com mensagens religiosas e teve de comprar umas balas pra afastar a vendedora que falava cuspindo. Ele quase virou o rosto para apreciar a rua - como sempre fazia -, mas naquele momento ele a viu. A moça parecia ter uns dezenove, vinte anos. Vestia-se de forma calculadamente desleixada, e seus cabelos muito vermelhos desciam em cascata pelas suas costas. Ela ria com os lábios e os olhos, enquanto falava ao celular com alguma amiga.

Ruby, Ruby Ruby Ruby.

Ele parou por um momento para apreciar o que via. Sentia que, a qualquer momento, um par de asas platinadas poderia crescer nas costas da garota - que ele mentalmente chamou de Ruby - e, sem mais nem menos, resolver todos os problemas do mundo com o simples gesto de levantar voo. Estava apenas maravilhado. Ruby percebeu o olhar em sua direção, e imediatamente o retribuiu com um ar risonho. "Ela não deve ser daqui", pensou o jovem, diante do comportamento alegre e sociável da ruiva.

Os dois trocaram olhares por um tempo que não souberam medir, e as pessoas ao redor podiam sentir a energia que os dois geravam naqueles breves contatos visuais. O rapaz se sentia envergonhado... Melhor, encabulado. Olhar para Ruby era apenas desconcertante. Aquela magia foi quebrada de forma tão repentina quanto o seu início.

"Próxima parada: Estação Eufrásio Correia. Desembarque por todas as portas. Você poderá fazer as seguintes conexões..."

Ele se levantou, cedendo o lugar a uma mulher que usava uma saia jeans assustadoramente longa para uma saia jeans, e esperou a porta abrir. Olhou uma última vez para Ruby, que deu uma torcidinha na boca; aquele não era o ponto dela. Desapontado, desceu do ônibus e o assistiu seguir seu caminho, levando um anjo ruivo com ele. Um fato curioso: Ruby desceria na próxima parada.

Do ya, do ya, do ya, do ya
Know what you doing, doing to me?

Mais tarde, já em casa, ele foi assistir ao noticiário local. Entre uma notícia sobre queimas de estoque com a iminente mudança da estação e uma reportagem sobre a elevação do preço da gasolina, o âncora relatou brevemente um acidente em que uma moça, ao correr na chuva para tentar pegar um ônibus, foi atropelada e faleceu. Seu nome era Ana Rosa da Cunha. Uma foto três-por-quatro foi mostrada; até naquela foto ela estava linda, embora o tamanho de seus cabelos absurdamente vermelhos estivesse escondido. Os olhos e a boca, contudo, não sorriam juntos. O corpo seria mandado para Juiz de Fora, e o velório aconteceria posteriormente.

"Ela realmente não era daqui", pensou, tomado por uma incomum e profunda tristeza.

Could it be, could it be that you're joking with me?
And you don't really see you and me?

No dia seguinte ele acordou às seis. Tomou banho às seis e sete. Tomou café às seis e quinze. Ajeitou a mochila às seis e meia. Saiu de casa às sete, pegou o ônibus às sete e quinze. Seu olhar se voltou ao tempo todo para a rua, através da janela. Então, aulas até a pausa para o almoço, sem nada de muito especial acontecendo durante a manhã.

"Nada de muito especial" foi também exatamente o que aconteceu pelo resto dos dias daquele rapaz.

quinta-feira, 7 de março de 2013

Oblivione

Era um café como qualquer outro... Bem,  talvez não tão frequentado quanto um Starbucks, apenas por ser pequeno e muito escondido, localizado em uma rua estreita e frequentada por gente estranha. Certo, não era um café como qualquer outro. Caminhando vagarosamente, Victor pensava que não podia estar vestido de forma mais casual - era importante se misturar ao local para poder passar despercebido com sucesso. Ao virar uma esquina para entrar naquela rua sentiu-se nervoso: seria a primeira vez em três anos que faria algum contato com ela novamente. Apesar de estar ansioso, não respirou fundo; sabia que aquilo não adiantaria.

Ao abrir a porta do café um sininho tocou. O primeiro fragmento de ideia que se passou pela cabeça do rapaz foi... "Marrom." Pigarreou e foi procurar um assento no balcão, lendo o cardápio sem prestar atenção alguma. "Que lugar marrom. Sério mesmo que ela veio parar aqui?", pensou novamente. Ao percorrer o olhar pelo estabelecimento, com certo receio, ficou espantado por um momento.

Victor a identificou imediatamente, mas ela parecia outra pessoa. "Correção: ela é outra pessoa." A garota sorria como ele nunca a tinha visto sorrir, enquanto conversava com um cliente regular do café. Seus cabelos - agora louros - estavam muito mais longos do que antes, e presos numa trança desleixada. Seus olhos... Um céu azul contido em dois orbes. Antes que Anabelle o pegasse no flagra, voltou-se para o cardápio. Uma parte dele se arrependia de tê-la transformado em Ann. Outra parte jamais voltaria atrás. Outra ainda queria apenas sair dali.

"O que o senhor quer?", perguntou o homem atrás do balcão. "Marrom..."

- Um café, por favor. - pediu, sem nem perceber.

***

- VICTOR, NÃO! Eu não quero isso! Podemos ir juntos se...

- NÃO! Belle, é mais seguro se você for sozinha, já está tudo arranjado.

- EU NÃO ME IMPORTO! Você não pode me despachar sozinha para sabe-se lá onde e achar que eu vo--

A mão de Victor em sua testa a calou, e seus olhos castanhos pareceram invadir seu campo de visão, sua mente...

Seu corpo.

Sua alma.

***

"Curasque et corpora somnus. Sit praeteritis esse praeteritis, contemplans novum futurum."*

As palavras ditas naquela noite ecoavam na mente do moreno, atormentando seus pensamentos. Ele tirou um caderninho do bolso interno da jaqueta e começou a procurar um contrafeitiço... Até se lembrar dos últimos atentados às testemunhas de um crime deveras violento há três anos e meio. Uma das vítimas foi mergulhada num tanque de água que se enchia de cal aos poucos. Outra teve os membros torcidos até formarem quatro fraturas expostas, e foi abandonada no meio de um bosque. Os flashes dessas cenas fizeram com que fechasse o caderninho.

Tomou então um gole daquele café intragável e desagradavelmente marrom. Ele começou a entender o que realmente tinha feito, o que já era o primeiro passo para aceitação: Anabelle não existia mais. O ritual invalidou a existência da menina, seus registros foram apagados como se ela nunca tivesse nascido. Tudo foi substituído por uma nova garota... Que sorria para os clientes do café marrom em Liverpool.

Ao colocar a mão na testa de Anabelle e recitar aquelas palavras, ele jogou a garota no esquecimento. Mais tarde - na mesma noite em que insistiu para que Belle fugisse e ela tentou ir contra sua vontade - Victor a deitou carinhosamente num chão de madeira, cobrindo seu corpo com uma fina seda branca e cercando-a de velas acesas. O incenso queimava enquanto o rapaz recitava um dos feitiços em seu caderno, e ditava para a moça os detalhes da nova vida que estava prestes a assumir. Quando Belle acordou, seu nome era Ann, e tinha nascido e crescido em Liverpool. Apenas ouviu falar, bem por cima, daquele assassinato terrível que foi manchete por uma semana em todos os jornais do mundo.

Ela veio tirar a xícara vazia da frente de Victor, e quando seus olhos se encontraram ela sorriu para ele. Vê-la sorrir daquela forma o amoleceu, e antes que fosse enfeitiçado pelo desejo de estar com Belle - com Ann, com ela - novamente, jogou duas notas no balcão e se levantou para sair dali.

O sininho tocou novamente quando ele saiu do café, e o choque da diversidade de cores o abalou por alguns instantes. Reparou então que suava frio. "Boa. Lida com criminosos todo dia num puta centro urbano, mas não consegue sobreviver a um café marrom no meio do nada.", pensou com amargura. Ao fazer a caminhada de volta, o encanto do esquecimento fazia sua cabeça doer. "Curasque et corpora somnus. Sit praeteritis esse praeteritis, contemplans novum futurum. Curasque et corpora somnus. Sit praeteritis esse praeteritis, contemplans novum futurum."*

Só conseguiu tirar essas palavras da cabeça um pouco antes de dormir, duas noites após esse café marrom. Era melhor assim. Se ele a amava? É claro que sim. Apenas era melhor desse jeito. Anabelle estava segura, seu feitiço funcionou. Ela estava, para seu alívio, trancada em um mundo marrom.

Muito longe de todo aquele vermelho que estaria em seu destino, caso ainda respondesse por Belle.


NdT:
* Sono tranquilo. Deixe o passado no passado, contemplando um novo futuro.