Coisas interessantes

terça-feira, 20 de agosto de 2013

Ana dos Jardins

Pedalava sua bicicleta ao som de um acordeon que podia ser notado apenas por seus ouvidos. Os curtos cabelos castanhos, escondidos dentro de uma boina esverdeada, permaneciam protegidos do vento. O olhar agitado registrava a cidade inteira com paixão ardente. Assim, quando o sentimento transbordava e não cabia mais em si ela parava; da cestinha de sua bicicleta, tirava um bloco de papel barato e uma caneta esferográfica preta. Começava, então, a registrar em traços belos e firmes aquele ponto da cidade pelo qual sentiu amor no momento.

Era uma mulher de paixões efêmeras. Seu mundo era um eterno outono e tinha cheiro de canela. Chamava-se Ana Rosa, mas gostava mais de violetas. Não que não gostasse de alguma flor, mas é que realmente tinha uma queda pelo azul-violetado. Ou seria violeta-azulado? A dúvida sempre a divertia.

Ana Rosa odiava certezas. Nunca gostou de escola, mas desde pequena juntava conhecimentos e experiências em caderninhos. Cada dia para ela era uma nova jornada. Cada passeio com sua bicicleta era uma nova descoberta, e cada ponto da cidade um novo jardim a ser desbravado, registrado e amado. E como amava aquela cidade. Mudara-se para lá por amor, um amor que nunca sentiu por pessoa alguma. A cidade era a única regra em sua vida, pelo simples motivo de que era a única constante variável que já vira.

O nome dessa cidade é Curitiba. Não tem, naturalmente, cheiro de canela... Mas Ana Rosa sabia onde procurá-lo.

A menina não sabia que, anos após a sua morte (que aconteceria - por completo - em mais ou menos dez anos a partir daqui), seria a musa de não apenas um, mas de diversos escritores e de suas epifanias. Ela se preocupava, no momento registrado neste texto, com os tijolos amarelos de uma casa de telhado verde. "É uma bela história", você deve estar pensando - e com razão! A história de vida de Ana Rosa é bela. Bela de uma forma que, se conseguires ler por inteiro, lhe fará sentir uma dor terrível no coração. A garota desenhava em seu caderninho com muita concentração, e só levantou a cabeça ao sentir falta de uma boa iluminação; escurecia. Ana Rosa resolveu pegar sua bicicleta e ir para casa... Continuaria o desenho de memória.

Mas ela não teve tempo sequer de subir na tal bicicleta. Antes que pudesse entender o que estava acontecendo, dois homens de três metros de altura a jogaram no chão. Eles não tinham rostos para mostrar. Ela foi arrastada pelas pernas para dentro da casa de tijolos amarelos e telhado verde, que estava abandonada, e lá dentro suas roupas foram rasgadas. Tudo era um borrão em vermelho mais um branco trêmulo de uma lâmpada em curto. Foi agredida, xingada, socada, humilhada. Sangrou por sua flor, por sua boca, por vários cortes, por baixo da própria pele e também pela alma. Após o que lhe pareceu uma eternidade... Acabou. A agressão, os agressores, a luz... Tudo se foi.

Inclusive parte de sua vida.

Encontraram-na ao entardecer do dia seguinte, em circunstâncias que nunca voltaram à sua memória até o dia de sua morte. Lembrava-se de pouquíssimas coisas, mas algumas imagens ficariam para sempre impressas em sua mente.

Os tijolos amarelos.

O telhado verde.

O belo jardim de violetas que crescia em uma parte do terreno.

Quando conseguiu recuperar seu eu, sua existência e sua consciência, tempos depois, Ana Rosa vendeu sua bicicleta. Fez um voto de despedaçar qualquer violeta que estivesse ao seu alcance; senta repulsa pelo azul-violetado que testemunhara o começo de seu fim... Ou violeta-azulado. Tanto faz. Também começou a omitir a Rosa de seu nome, por ter perdido seu gosto por flores. Deixou os cabelos crescerem, tingiu-os de vermelho e comprou uma moto. Trocou a boina pelo capacete, as blusas de lã por roupas normais de gente grande. Então viajou para a Rússia, e ficou lá por uns tempos.

Voltou Anoushka. Ou então, para o futuro escritor... Ruby.
Nunca mais sentiu cheiro de canela.

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Alfaiataria

Eu moro em Enbizaka, um pequeno vilarejo no Japão. É um lugar pacato, e por ser pequeno, todos aqui se conhecem. É um lugar deveras tradicional, e onde nada demais acontece. Nada mesmo. Ah, quase esqueci! Meu nome é Kayo, e sou dona de uma alfaiataria, embora não tenha empregados. Passo meus dias fazendo ou consertando vestes, e a vida é... Boa, eu diria. As pessoas, de forma geral, gostam muito de mim: por não cobrar um preço abusivo pelo meu trabalho, dizem que sou uma boa menina e sempre me presenteiam com alguma comida caseira além do meu pagamento usual. Eu tenho, também, um marido; mas não tenho perspectiva nenhuma de engravidar, pois ele não parece me querer.

Ele sequer volta para casa à noite.

Mas eu preciso continuar meu trabalho. As pessoas, de tão boas que são, sequer comentam a traição de meu marido. Seria por piedade? Sendo qual for o motivo, a eles sou muito agradecida. Não preciso dessa vergonha! Sou uma menina trabalhadora. Minhas tesouras nunca param! Pois lá eu estava, cortando a seda florida com minha tesoura, uma herança de minha mãe. Eram ferramentas muito boas, precisavam de pouco tempo na afiação para que o seu fio pudesse cortar ao mísero roçar da lâmina. Assim, ao invés de ir para a cama, eu preenchia minhas noites com trabalho e uma canção.

"Continue a cortar, tornando a costurar
O suave tecido que te enche o olhar
Desejando sempre o que não lhe cabe
Corte a seda! Mostre-lhe o que sabe!"

Amanheceu um belo dia no vilarejo, calmo como sempre. Resolvi sair um pouco de minha alfaiataria. Escolhi então um belo kimono azul, com flores prateadas, uma faixa púrpura e meus melhores sapatos para caminhar pela rua principal. Cumprimentei alguns clientes na rua, com um sorriso estampado no rosto, até ver o meu marido sair de uma casa. Quem diabos é aquela mulher ao lado dele? Aquele kimono vermelho... Apropriado para alguém daquele tipo. Bonita... Não aguentei vê-los juntos, não aguento aquela mulher recebendo um carinho dele. Eu, a esposa, não recebo nem uma palavra e ela recebe toques? Saí correndo daquele lugar, voltando imediatamente para minha alfaiataria.

Eu fiz algo para merecer isso?

Toda essa humilhação pública, eu mereço?

Retomei meu trabalho, pois tinha uma nova encomenda. Lutando contra a tristeza eu continuei a cortar, pois coincidentemente eu precisava costurar um kimono vermelho. É esse o tipo de mulher que lhe apraz, meu marido?

"Continue a cortar, tornando a costurar
O suave tecido que te enche o olhar
Desejando sempre o que não lhe cabe
Corte a seda! Mostre-lhe o que sabe!"

Não sei quanto tempo se passou desde o incidente da mulher em vermelho. Sei que algum tempo depois, quando o kimono novo já estava pronto, houve um burburinho na cidade sobre uma tragédia; mas eu estava decidida a não sair mais de casa. Porém, estava curiosa: nunca acontecia nada em Enbizaka! Fui, então, olhar o movimento pela janela. Todos estavam muito alvoroçados, e o medo se instaurou ali. Mas nem naquela situação o meu marido pareceu tomar vergonha: lá estava ele com outra mulher! E consolando-a, ainda! Abraçava a moça pela cintura, na qual ela usava uma bela faixa verde. Uma bela moça para cair em seus modos e gostos. Fechei a janela com um estrondo. Como ele podia fazer isso comigo? Na frente da vila inteira? Minhas pernas cederam e tornei a chorar, escondendo o rosto com as mãos. ELE É MEU MARIDO! Numa fúria desolada voltei ao trabalho, mexendo nervosamente com minhas tesouras e agulhas, pois precisava consertar uma faixa rasgada que acabara de secar da lavagem.

"Continue a cortar, tornando a costurar
O suave tecido que te enche o olhar
Desejando sempre o que não lhe cabe
Corte a seda! Mostre-lhe o que sabe!"

Dormi sobre o trabalho em progresso e acordei com um grito de fazer a alma pular do corpo: havia acontecido um assassinato! Sem sequer vestir outra roupa eu saí correndo, com medo de a vítima ter sido o meu marido; eu nunca poderia desejar a sua morte, não de verdade! Qualquer coisa dita através da raiva é sem fundamento! Enquanto corria na direção da comoção, vi de relance o meu querido marido sair de uma loja de adereços. Desviei de meu caminho e corri para abraçá-lo... Mas estaquei no meio do caminho quando o vi consolando uma terceira menina, muito jovem - UMA CRIANÇA! -, e colocando em seu cabelo um grampo dourado belíssimo. Aquilo foi demais para mim.

Eu não tenho nada. Nenhum contato. Nenhuma palavra, nenhum carinho. E essas outras, essas desonradas ganham carinhos, gestos, palavras e presentes! PRESENTES! O que ele pensa que está fazendo? ELE NÃO TEM LIMITES? VERGONHA? DECÊNCIA?

"Continue a cortar, tornando a costurar
O suave tecido que te enche o olhar
Desejando sempre o que não lhe cabe
Corte a seda! Mostre-lhe o que sabe!"

Quando me dei conta estava novamente em casa, terminando meu trabalho. Minhas tesouras sempre foram dessa cor? Eu costurei até meus dedos sangrarem, e o sangue pareceu preencher uma parte grande até demais do chão da loja... Mas finalmente terminei meu trabalho. E agora se ele não vem me ver, eu irei até ele. Já amanhecia quando eu terminava de me vestir como essas meninas que ele gosta. Então saí e o encontrei na rua, estranhamente abatido... Eu usava um kimono vermelho, uma bela faixa verde na cintura e um grampo de cabelo dourado. Sorria. Então, com uma mesura, eu o cumprimentei e perguntei se estava bela para ele.

Ele ruborizou, e sua resposta foi: "Como vai? Já nos conhecemos?"

Como se fôssemos estranhos.
Como se fôssemos estranhos.

O boato que corre no vilarejo é que uma família de quatro pessoas foi morta naquele verão. Eles estão errados, minha família era apenas o meu marido! Como nunca encontraram os corpos, o mistério dos assassinatos nunca foi desvendado. Naquele verão eu comi muitos pastéis de carne com inhames temperados. Aprendi a não sentir mais saudades dele e não chorar mais à noite enquanto lavava o sangue do chão de minha alfaiataria. Não sei como aquele sangue todo foi parar lá... Isso seria para sempre um mistério para mim.


***


DISCLAIMER: Esse conto na verdade é baseado inteiramente na música 円尾坂の仕立屋 (Enbizaka no Shitateya). Essa é a minha interpretação da música, como se eu estivesse no lugar da personagem, como se eu estivesse vendo, fazendo e sentindo tudo aquilo. Então os créditos da história são inteiramente do criador da música (que se identifica como Mothy), eu apenas a tirei da melodia uma personagem para trazê-la à vida em texto corrido. :3