A rotina matinal era a mesma há dois anos: acordar às seis. Tomar banho às seis e sete. Tomar café às seis e quinze. Ajeitar a mochila às seis e meia. Sair de casa às sete, pegar o ônibus às sete e quinze. Então, aulas até a pausa para o almoço, sem nada de muito especial acontecendo nesse período de tempo.
A última quinta-feira de fevereiro não foi diferente... Até o ônibus chegar.
O rapaz entrou com certa pressa e impaciência naquele ônibus, sentando-se na única cadeira vaga perto da porta 05. Como sempre fazia, colocou sua mochila no colo. Resolveu, então, fazer uma mudança drástica em seus procedimentos: ao invés de olhar através da janela, decidiu olhar para as pessoas dentro do ônibus. Lembrou-se, após algum tempo, o motivo de sempre se voltar para a janela.
Recebeu dois marca-páginas com mensagens religiosas e teve de comprar umas balas pra afastar a vendedora que falava cuspindo. Ele quase virou o rosto para apreciar a rua - como sempre fazia -, mas naquele momento ele a viu. A moça parecia ter uns dezenove, vinte anos. Vestia-se de forma calculadamente desleixada, e seus cabelos muito vermelhos desciam em cascata pelas suas costas. Ela ria com os lábios e os olhos, enquanto falava ao celular com alguma amiga.
Ruby, Ruby Ruby Ruby.
Ele parou por um momento para apreciar o que via. Sentia que, a qualquer momento, um par de asas platinadas poderia crescer nas costas da garota - que ele mentalmente chamou de Ruby - e, sem mais nem menos, resolver todos os problemas do mundo com o simples gesto de levantar voo. Estava apenas maravilhado. Ruby percebeu o olhar em sua direção, e imediatamente o retribuiu com um ar risonho. "Ela não deve ser daqui", pensou o jovem, diante do comportamento alegre e sociável da ruiva.
Os dois trocaram olhares por um tempo que não souberam medir, e as pessoas ao redor podiam sentir a energia que os dois geravam naqueles breves contatos visuais. O rapaz se sentia envergonhado... Melhor, encabulado. Olhar para Ruby era apenas desconcertante. Aquela magia foi quebrada de forma tão repentina quanto o seu início.
"Próxima parada: Estação Eufrásio Correia. Desembarque por todas as portas. Você poderá fazer as seguintes conexões..."
Ele se levantou, cedendo o lugar a uma mulher que usava uma saia jeans assustadoramente longa para uma saia jeans, e esperou a porta abrir. Olhou uma última vez para Ruby, que deu uma torcidinha na boca; aquele não era o ponto dela. Desapontado, desceu do ônibus e o assistiu seguir seu caminho, levando um anjo ruivo com ele. Um fato curioso: Ruby desceria na próxima parada.
Do ya, do ya, do ya, do ya
Know what you doing, doing to me?
Mais tarde, já em casa, ele foi assistir ao noticiário local. Entre uma notícia sobre queimas de estoque com a iminente mudança da estação e uma reportagem sobre a elevação do preço da gasolina, o âncora relatou brevemente um acidente em que uma moça, ao correr na chuva para tentar pegar um ônibus, foi atropelada e faleceu. Seu nome era Ana Rosa da Cunha. Uma foto três-por-quatro foi mostrada; até naquela foto ela estava linda, embora o tamanho de seus cabelos absurdamente vermelhos estivesse escondido. Os olhos e a boca, contudo, não sorriam juntos. O corpo seria mandado para Juiz de Fora, e o velório aconteceria posteriormente.
"Ela realmente não era daqui", pensou, tomado por uma incomum e profunda tristeza.
Could it be, could it be that you're joking with me?
And you don't really see you and me?
No dia seguinte ele acordou às seis. Tomou banho às seis e sete. Tomou café às seis e quinze. Ajeitou a mochila às seis e meia. Saiu de casa às sete, pegou o ônibus às sete e quinze. Seu olhar se voltou ao tempo todo para a rua, através da janela. Então, aulas até a pausa para o almoço, sem nada de muito especial acontecendo durante a manhã.
"Nada de muito especial" foi também exatamente o que aconteceu pelo resto dos dias daquele rapaz.
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