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quinta-feira, 7 de março de 2013

Oblivione

Era um café como qualquer outro... Bem,  talvez não tão frequentado quanto um Starbucks, apenas por ser pequeno e muito escondido, localizado em uma rua estreita e frequentada por gente estranha. Certo, não era um café como qualquer outro. Caminhando vagarosamente, Victor pensava que não podia estar vestido de forma mais casual - era importante se misturar ao local para poder passar despercebido com sucesso. Ao virar uma esquina para entrar naquela rua sentiu-se nervoso: seria a primeira vez em três anos que faria algum contato com ela novamente. Apesar de estar ansioso, não respirou fundo; sabia que aquilo não adiantaria.

Ao abrir a porta do café um sininho tocou. O primeiro fragmento de ideia que se passou pela cabeça do rapaz foi... "Marrom." Pigarreou e foi procurar um assento no balcão, lendo o cardápio sem prestar atenção alguma. "Que lugar marrom. Sério mesmo que ela veio parar aqui?", pensou novamente. Ao percorrer o olhar pelo estabelecimento, com certo receio, ficou espantado por um momento.

Victor a identificou imediatamente, mas ela parecia outra pessoa. "Correção: ela é outra pessoa." A garota sorria como ele nunca a tinha visto sorrir, enquanto conversava com um cliente regular do café. Seus cabelos - agora louros - estavam muito mais longos do que antes, e presos numa trança desleixada. Seus olhos... Um céu azul contido em dois orbes. Antes que Anabelle o pegasse no flagra, voltou-se para o cardápio. Uma parte dele se arrependia de tê-la transformado em Ann. Outra parte jamais voltaria atrás. Outra ainda queria apenas sair dali.

"O que o senhor quer?", perguntou o homem atrás do balcão. "Marrom..."

- Um café, por favor. - pediu, sem nem perceber.

***

- VICTOR, NÃO! Eu não quero isso! Podemos ir juntos se...

- NÃO! Belle, é mais seguro se você for sozinha, já está tudo arranjado.

- EU NÃO ME IMPORTO! Você não pode me despachar sozinha para sabe-se lá onde e achar que eu vo--

A mão de Victor em sua testa a calou, e seus olhos castanhos pareceram invadir seu campo de visão, sua mente...

Seu corpo.

Sua alma.

***

"Curasque et corpora somnus. Sit praeteritis esse praeteritis, contemplans novum futurum."*

As palavras ditas naquela noite ecoavam na mente do moreno, atormentando seus pensamentos. Ele tirou um caderninho do bolso interno da jaqueta e começou a procurar um contrafeitiço... Até se lembrar dos últimos atentados às testemunhas de um crime deveras violento há três anos e meio. Uma das vítimas foi mergulhada num tanque de água que se enchia de cal aos poucos. Outra teve os membros torcidos até formarem quatro fraturas expostas, e foi abandonada no meio de um bosque. Os flashes dessas cenas fizeram com que fechasse o caderninho.

Tomou então um gole daquele café intragável e desagradavelmente marrom. Ele começou a entender o que realmente tinha feito, o que já era o primeiro passo para aceitação: Anabelle não existia mais. O ritual invalidou a existência da menina, seus registros foram apagados como se ela nunca tivesse nascido. Tudo foi substituído por uma nova garota... Que sorria para os clientes do café marrom em Liverpool.

Ao colocar a mão na testa de Anabelle e recitar aquelas palavras, ele jogou a garota no esquecimento. Mais tarde - na mesma noite em que insistiu para que Belle fugisse e ela tentou ir contra sua vontade - Victor a deitou carinhosamente num chão de madeira, cobrindo seu corpo com uma fina seda branca e cercando-a de velas acesas. O incenso queimava enquanto o rapaz recitava um dos feitiços em seu caderno, e ditava para a moça os detalhes da nova vida que estava prestes a assumir. Quando Belle acordou, seu nome era Ann, e tinha nascido e crescido em Liverpool. Apenas ouviu falar, bem por cima, daquele assassinato terrível que foi manchete por uma semana em todos os jornais do mundo.

Ela veio tirar a xícara vazia da frente de Victor, e quando seus olhos se encontraram ela sorriu para ele. Vê-la sorrir daquela forma o amoleceu, e antes que fosse enfeitiçado pelo desejo de estar com Belle - com Ann, com ela - novamente, jogou duas notas no balcão e se levantou para sair dali.

O sininho tocou novamente quando ele saiu do café, e o choque da diversidade de cores o abalou por alguns instantes. Reparou então que suava frio. "Boa. Lida com criminosos todo dia num puta centro urbano, mas não consegue sobreviver a um café marrom no meio do nada.", pensou com amargura. Ao fazer a caminhada de volta, o encanto do esquecimento fazia sua cabeça doer. "Curasque et corpora somnus. Sit praeteritis esse praeteritis, contemplans novum futurum. Curasque et corpora somnus. Sit praeteritis esse praeteritis, contemplans novum futurum."*

Só conseguiu tirar essas palavras da cabeça um pouco antes de dormir, duas noites após esse café marrom. Era melhor assim. Se ele a amava? É claro que sim. Apenas era melhor desse jeito. Anabelle estava segura, seu feitiço funcionou. Ela estava, para seu alívio, trancada em um mundo marrom.

Muito longe de todo aquele vermelho que estaria em seu destino, caso ainda respondesse por Belle.


NdT:
* Sono tranquilo. Deixe o passado no passado, contemplando um novo futuro.

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